(por Leonardo Boff em 07/novembro/2011)
Hoje vigora vastamente
uma erosão de valores éticos que normalmente eram vividos e transmitidos
pela família e depois pela escola pela sociedade. Essa erosão fez com
que as estrelas-guia do céu da ética ficassem encobertas por nuvens de
interesses danosos para a sociedade e para o futuro da vida e do
equilíbrio da Terra.
Não obstante esta obscuridade
importa reconhecer também a emergência de novos valores ligados à
solidariedade internacional, ao cuidado para com a natureza, à
transparência nas relações sociais e à rejeição de formas de violência
política repressiva e da transgressão dos direitos humanos.
Mas nem por isso diminuiu a
crise de valores, especialmente no campo da economia de mercado e das
finanças especulativas que são as instâncias que definem os rumos do
mundo e o dia-a-dia dos assalariados, vivendo sob permanente ameaça de
desemprego.
As crises recentes denunciaram
máfias de especuladores instalados nas bolsas e nos grandes bancos cujo
volume de rapinagem de dinheiros alheios quase levou à derrocada todo o
sistema financeiro mundial.
Ao invés de estarem na cadeia,
depois de pequenos rearranjos, tais velhacos voltaram ao antigo vício da
especulação e do jogo de apropriação indébita dos “commons”, dos bens
comuns da humanidade (água, sementes, solos, energia, etc.).
Esta atmosfera de anomia e de
vale-tudo que se espraia também na política, faz com que o sentido ético
fique embotado e as pessoas diante da geral corrupção se sintam
impotentes e condenadas à amargura ácida e à resignação humilhante.
Neste contexto muitos buscam
sentido na literatura de autoajuda, feita de cacos de psicologia, de
sabedoria oriental, de espiritualidade com receitas para a felicidade
completa, ilusória, porque não se sustenta nem se apoia num sentido
realista e contraditório da realidade.
Outros procuram psicólogos e
psicanalistas que recebem dicas melhor fundadas. Mas no fundo, tudo
termina com os seguintes conselhos: “dada a falência das instâncias
criadoras de sentido como as religiões e as filosofias, devido à
confusão de visões de mundo, da relativização de valores e do vazio de
sentido existencial, procure você mesmo seu caminho, trabalhe seu Eu
profundo, estabeleça você mesmo referências éticas que orientam sua vida
e busque sua autorrealização.
“Autorrealização”: eis uma palavra mágica, carregada de promessas.
Não serei eu que vá combater a
“autorrealização” depois de escrever "A águia e a galinha: uma metáfora
da condição humana” (Vozes 1999), livro que estimula as pessoas a
encontrarem em si mesmas as razões de uma auto-realização sensata.
Esta resulta da sábia combinação
da dimensão de águia e de galinha. Quando devo ser galinha, quer dizer,
concreto, atento aos desafios do cotidiano e quando devo ser águia que
busca voar alto para, em liberdade, realizar potencialidades escondidas.
Ao articular tais dimensões, cria-se a possibilidade de uma
autorrealização bem sucedida.
Penso que esta autorrealização
só se consegue se incorporar seriamente três outras dimensões. A
primeira é a dimensão de sombra. Cada um possui seu lado autocentrado,
arrogante e outras limitações que não nos enobrecem. Esta dimensão não é
defeito mas marca de nossa condição humana, feita da união dos
contrários.
Acolher tal sombra,
cuidar que seus efeitos maléficos não atinjam os outros, nos faz
humildes, compreensivos das sombras alheias e nos permite uma
experiência humana mais completa e integrada.
A segunda dimensão é a relação
com os outros, aberta, sincera e feita de trocas enriquecedoras. Somos
seres de relação. Não há nenhuma autorrealização cortando os laços com
os demais.
A terceira dimensão é alimentar
certo nível de espiritualidade. Com isso não quero dizer que a pessoa
deva se inscrever em alguma confissão religiosa. Pode até ocorrer mas
não é imprescindível. O importante é abrir-se ao capital
humano/espiritual que, ao contrário do capital material, é ilimitado e
feito de valores como a verdade, a justiça, a solidariedade e o amor.
É nesta dimensão que emerge a
questão impostergável: que sentido tem, afinal, minha vida e o inteiro
universo? Que posso esperar? A volta ao pó cósmico ou ao abrigo num
Útero divino que me acolhe assim como sou?
Se esta última for a resposta, a autorrealização traz profundidade e uma felicidade íntima que ninguém pode tirar.
*Leonardo Boff é teólogo e filósofo.
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