Desde a mais remota Antigüidade o homem
tenta substituir partes do corpo e até mesmo órgãos inteiros por
similares retirados de doadores. As primeiras notícias que mostram esse
procedimento datam do ano 800 a.C., quando, na Índia, efetuaram-se
transplantes para reparar partes lesadas do nariz com a pele retirada da
fronte de um doador.
Nos tempos modernos,
contudo, o primeiro transplante de um órgão vital executado com relativo
sucesso ocorreu na África do Sul, em 1967, graças à habilidade do
cirurgião Christian Barnard em dominar as técnicas operatórias
cardiovasculares já então desenvolvidas. Hoje, devido a uma maior
compreensão dos mecanismos responsáveis pela rejeição de tecidos, os
transplantes cardíacos, hepáticos e renais têm ocorrido de maneira por
assim dizer rotineira, em alguns casos permitindo sobrevida que
ultrapassa uma dezena de anos.
Consciente da
realidade do Espírito imoral, é natural que a grande família espírita
de nosso país se preocupe com o assunto ou lhe oponha alguns
questionamentos, sobretudo a partir da promulgação da Lei nº 9434, de 4
de fevereiro de 1997, que “dispõe sobre a remoção de órgãos, tecidos e
partes do corpo humano para fins de transplante e tratamento e dá outras
providências”.
O cerne da questão é a
denominada morte encefálica, na vigência da qual, órgãos ou partes do
corpo humano são removidos para utilização imediata em enfermos deles
necessitados. A dificuldade reside justamente em identificar, com
precisão, se determinada criatura já preenche os requisitos exigidos
para ser classificada nessa situação. Como imaginar que alguém possa ter
morrido, se o seu coração ainda bate? E quem garante que a Medicina
terá dado a sua última palavra ao afirmar que o agonizante em coma
encontra-se em processo irreversível e inexorável em direção à morte?
Afinal de contas, há tantos relatos verídicos de enfermos em tais
condições que recuperaram parcial ou totalmente a saúde e se
reintegraram ao convívio social... E se confundirmos o estado de morte
encefálica, retirando órgãos vitais de pessoas ainda vivas? Qual a
repercussão desse ato sobre o corpo físico do doente? Não estaríamos,
nesta hipótese, cometendo um assassinato? E que dizer do perispírito,
esse modelador plástico de importância tão significativa na elaboração
do organismo em que vai habitar por algum tempo o Espírito imortal? Tais
as questões sobre as quais importa nos fixemos na tentativa de
esclarecer o assunto.
Vamos começar pela
definição de morte encefálica. O conceito é baseado na constatação
clínica de coma aperceptivo e ausência total de reflexos ou de
movimentos supra-espinhais que não sejam provocados por hipotermia ou
depressão medicamentosa, observados por um tempo mínimo de seis horas.
Tal achado clínico deverá necessariamente respaldar-se em um exame
subsidiário que demonstra de forma cabal e definitiva a ausência de
atividade elétrica cerebral, de perfusão sangüínea cerebral ou de
atividade metabólica. A primeira é evidenciada pelo eletroencefalograma e
pelo estudo dos potenciais evocados; a segunda, pela arteriografia
cerebral, pelo estudo radioisotópico, pela ultrasonografia transcraniana
e pela monitorização da pressão intracraniana, enquanto a última poderá
ser constatada pelo PET-SCAN e por métodos que medem a extração e o
consumo de oxigênio (HC-FMUSP). Estar em morte encefálica, portanto, é
estar em uma condição de parada definitiva e irreversível do encéfalo,
incompatível com a vida e da qual ninguém jamais se recupera. Logo, os
doentes considerados desenganados e em fase terminal que se recuperaram
são aqueles que em verdade não preenchiam os critérios de morte
encefálica, dela possuindo apenas a aparência, como certos estados
comatosos que resultam da agressão de um ou de vários órgãos do corpo
humano. Conseqüentemente, carece de argumentação científica o pretexto
utilizado pelos espíritas para condenarem o transplante de órgãos: a
eutanásia de modo algum se encaixaria nesses casos de morte encefálica
comprovada.
Uma objeção por assim dizer
ponderável que se faz no meio espírita em relação ao transplante de
órgãos diz respeito às repercussões perispirituais que o Espírito possa
vir a sentir. Diagnosticada a morte encefálica, experimentaria o
Espírito algum tipo de dor no momento em que um órgão de seu corpo
moribundo esteja sendo retirado pela equipe médica que intervém no
processo? Os Espíritos reveladores informam que a separação da alma e do
corpo não é dolorosa (“O Livro dos Espíritos”- questão 154), embora os
relatos mediúnicos, sobretudo quando descrevem o sofrimento por que
passam os suicidas, nos mostrem que alguns deles experimentam a sensação
aterrorizadora da decomposição do corpo físico que já foi abandonado à
sepultura! Ora, é a Doutrina Espírita também que nos esclarece que os
laços perispirituais não se quebram, simplesmente se desatam. (Questão
155 - obra citada). Isso é facilmente entendido na chamada morte
natural, aquela que sobrevém pelo esgotamento dos órgãos físicos, em
conseqüência da idade ou de moléstia prolongada. Contudo, nos casos de
morte violenta, em que a desencarnação não resultou da extinção gradual
das forças vitais, sendo mais tenazes os laços que prendem o corpo ao
perispírito, mais lento será o desprendimento completo do corpo
espiritual. Ou seja, persistindo ainda alguns laços que prendem o
perispírito ao corpo agonizante ou em estado de decomposição, conforme o
tempo transcorrido é natural que, a alma experimente certa repercussão
no corpo perispiritual provocada pela retirada dos órgãos que serão
transplantados, sem que isso se traduza necessariamente por dor ou
sofrimento.
No entanto, os Espíritos nos têm
alertado sobre o cuidado que devemos observar diante da cremação de
cadáveres. Segundo orientação transmitida pelos Imortais a Léon Denis,
“a cremação provoca desprendimento mais rápido, mais brusco e violento,
doloroso mesmo para a alma apegada à Terra por seus hábitos, gostos e
paixões”. Emmanuel chega mesmo a recomendar que se procrastine a
cremação por 72 horas, certamente em virtude dos ecos de sensibilidade
existentes entre a alma e o corpo que será incinerado. Trazendo o
problema para a órbita dos transplantes, poderíamos, da mesma forma,
inferir que a retirada abrupta de tecidos ou órgãos de um corpo, cujos
laços perispirituais ainda não se romperam completamente, possa levar a
igual resultado, ou seja, provocará dor e sofrimento de gradação
variada. É possível! Contudo, não nos esqueçamos de que o Espírito de um
indivíduo que só viveu para a satisfação de seus instintos materiais e
sensuais poderá experimentar também dores inenarráveis, em virtude do
processo natural de decomposição do corpo que a morte colheu, ainda
mesmo que tenha sido abençoado pela chamada morte natural e não haja
sofrido o processo de cremação! Nele, o desprendimento do perispírito é
bem mais lento, podendo durar dias, semanas ou meses. Recordemos, ainda,
de situação que ocorre todos os dias nas grandes cidades: a prática da
necrópsia, exigida por força da Lei, nos casos de morte violenta ou sem
causa determinada: abre-se o cadáver, da região esternal até o baixo
ventre, expondo-se-lhe as vísceras tóracoabdominais.
Muitas
vezes a morte do corpo físico se verificou horas antes dessa
intervenção, portanto, no período em que o desligamento dos laços
perispirituais não se teria dado completamente, podendo o processo
repercutir de forma dolorosa na alma que partiu! Muitos exemplos
poderiam enumerar ainda para ilustrar outros casos que resultassem em
idêntica conseqüência para o Espírito recém-chegado ao Plano Espiritual.
Mas... sofreriam eles, realmente, em qualquer uma dessas situações? E a
questão do mérito pessoal? Estaria o destino dos Espíritos
desencarnados à mercê da decisão dos homens em retirar-lhes os órgãos
para transplante, em cremar-lhes o corpo ou em retalhar-lhes as vísceras
por ocasião da necrópsia?! O bom senso e a razão gritam que isso não é
possível, porquanto seria admitir a justiça do acaso e o acaso não
existe!
Jesus - Cristo marcou a sua passagem
entre nós pelos exemplos de caridade de que se fez protagonista. A
autoridade dos seus ensinamentos reside precisamente nos atos de nobreza
com que dignificou o seu apostolado na Terra.
E
quantas vezes Ele se serviu de imagens do cotidiano para ilustrar a Sua
mensagem de paz e de boa vontade entre os homens! A parábola da ovelha e
dos bodes, na alegoria do Juízo Final (Mateus 25:31-46), assim como a
do Bom Samaritano (Lucas, 10:25-37) evidenciam o Seu empenho em nos
apontar o verdadeiro caminho da felicidade eterna - a caridade, o amor
na sua mais lídima expressão. As curas por Ele operadas em nome da
fraternidade legítima, os exemplos numerosos de que deu testemunho ao
vivenciar o entendimento, a tolerância, a humildade e o perdão sem
fronteiras atestam de maneira eloqüente que o seu discurso estava
perfeitamente alinhado com a conduta irrepreensível que dele fez o tipo
mais perfeito que Deus tem oferecido ao homem, para lhe servir de guia e
modelo. (“O Livro dos Espíritos” - questão 625).
Paulo
de Tarso, o vaso escolhido por Jesus para levar a mensagem libertadora
do Evangelho muito além das acanhadas fronteiras de Israel é, também, um
exemplo vivo de dedicação e de fidelidade à causa cristã. E ninguém
melhor do que ele para compreender a exata dimensão do amor que se
desprende das lições iluminadas da Boa-Nova: falar a língua dos homens e
dos anjos; ter fé ao ponto de transportar montanhas; distribuir todos
os bens, entre os pobres; e entregar o próprio corpo ara ser queimado,
nada disso teria proveito se não fosse chancelado pelo amor. Amor
paciente, benigno, que não arde em ciúmes, que não cuida dos seus
interesses, que se regozija com a verdade, que sofre, que suporta tudo,
que jamais acaba... (I Cor., 13:1-13).
A
Doutrina Espírita, cumprimento da promessa de Jesus de permanecer
eternamente conosco, resumiu todos os deveres do homem para consigo
mesmo e para com o Criador através da máxima ”FORA DA CARIDADE NÃO HÁ
SALVAÇÃO” (Allan Kardec - “O Evangelho segundo o Espiritismo”, cap. 15,
item 5). Seus missionários nada mais têm realizado do que observar
fielmente esse preceito.
Ora, quando
retiramos partes de um cadáver para transplantar em alguém não é o
sentimento da mais pura caridade que nos impulsiona? Não estaremos
animados daquele sentimento de solidariedade, de caridade pura e
desinteressada a que o Evangelho se refere e nos convida a por em
prática?
Sejamos pragmáticos. O Espiritismo
não poderá jamais contestar interpretações que se afastem desse
princípio, a pretexto de defender hipotéticas considerações
doutrinárias, até mesmo a de que o transplante levaria à obsessão. A
retirada de órgãos aproveitáveis de um cadáver para serem transplantados
em alguém que deles necessite não afetará o Espírito que animava o
corpo do doador, se este não merecer passar por esta prova. A Lei de
Deus, além de justa, é eminentemente misericordiosa, representando o
transplante de órgãos valiosa oportunidade dentre tantas outras
colocadas à nossa disposição para o exercício da caridade. Estejamos,
pois, certos de que “eventuais repercussões perispirituais ou ecos de
sensibilidade que o Espírito possa vir a sentir são irrelevantes, diante
de um Bem maior”. (Jornal Espírita - fev./98).
Finalmente,
não nos esqueçamos jamais de orientar o receptor de transplantes acerca
da aquisição e manutenção da saúde que realmente importa - a saúde do
Espírito. Todas as criaturas que Jesus curou fisicamente experimentaram o
fenômeno da morte do corpo físico, ascendendo às regiões inacessíveis
ao sofrimento somente aquelas que foram reconhecidas por muito se
amarem.
Fonte: Revista Reformador – outubro/1998
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