Por Paul Brunton
Os gatos sonolentos do Cairo abriram seus olhos verdes e, bocejando, espreguiçaram-se com toda sua graça felina, estirando suas patas felpudas. Caía o dia, e com o crepúsculo começavam as atividades próprias da sua espécie: as miadelas amistosas, a busca de alimentos, a caça de ratos, brigas e amorosas conquistas. Com a chegada do crepúsculo, começou também a atividade mais estranha da minha existência, embora fosse vivida em silêncio.
Estava decidido a passar a noite inteira dentro da Grande Pirâmide e permanecer doze horas na Câmara do Rei, desperto e alerta, quando as sombras estivessem atravessando com seu passo o continente africano. Finalmente ali estava eu, instalado no recinto mais raro e mais estranho que jamais fora construído na terra.
Não me foi fácil chegar àquele momento tão desejado. Descobri que, embora acessível ao público, a Grande Pirâmide não era de propriedade pública; pertence ao governo egípcio, e não se podia entrar no seu interior e passar uma noite no melhor dos seus recintos, como não se pode entrar numa casa alheia e passar a noite no melhor dos seus dormitórios, sem mais nem menos.
Para visitar a Pirâmide tem que se pedir licença ao Ministério de Antiguidades e pagar cinco pilastras pela entrada. Fui, pois, ao Ministério e com todo o otimismo solicitei a licença de passar uma noite na Pirâmide. Se eu tivesse pedido licença para viajar à lua, a fisionomia do funcionário que me atendeu não teria demonstrado maior espanto.
Dei-lhe então uma breve explicação para justificar meu pedido. A surpresa cedeu lugar à mofa; o homem sorriu. Compreendi que ele me considerava um candidato pronto a ingressar numa certa instituição da qual poucos queriam ser hóspedes. Finalmente disse:
“É a primeira vez que se me faz semelhante pedido; não creio ter qualificações para lhe dar a autorização que solicita.”
Mandou-me a um outro funcionário de maior hierarquia do mesmo Departamento, em cuja entrevista se repetiu a cômica cena anterior. Meu otimismo começava a desvanecer-se. “Impossível!”, exclamou esse segundo funcionário, com toda amabilidade, mas categoricamente, pensando ter diante de si um louco inofensivo. Sinto muito, acrescentou, “mas não é costume...” - Encolheu os ombros sem terminar a frase.
Levantou-se para me despedir, e ver-me longe dali.
Então, minha experiência de jornalista, adormecida durante tantos anos, mas não extinta, entrou buliçosamente em ação. Comecei a discutir e, de modos diferentes, repetir meu pedido com insistência, resistindo em abandonar a sala. O homem, finalmente, conseguiu livrar-se da minha presença, dizendo que o assunto não competia à jurisdição do Departamento de Antiguidades.
Perguntei então a quem competia dar-me a permissão. Não estava bem seguro o funcionário; contudo, aconselhou a dirigir-me à polícia.
Julguei que meu pedido era, no melhor dos casos, excêntrico e, no pior, suficiente para me classificar de maluco. Mas não podia desistir. A decisão de levar a cabo meu propósito se converteu numa verdadeira obsessão.
Na Delegacia de Polícia descobri uma Seção de Licenças. Pela terceira vez implorei que me permitissem passar a noite na Pirâmide. O oficial que me atendeu, não sabendo o que fazer comigo, optou por mandar-me falar com o seu chefe. Este me pediu que aguardasse para resolver o assunto. Quando, no dia seguinte, voltei esperançoso, anunciou ter encaminhado meu pedido ao Ministério de Antiguidades!
Regressei ao domicílio, desesperado por não haver conseguido meu intento.
Todavia, “às dificuldades são feitas para serem vencidas”, diz o adágio, cuja singeleza não diminui sua inegável verdade. Minha deliberação seguinte foi pedir uma entrevista ao comandante e chefe da polícia do Cairo, o atencioso El Lewa Russel Pachá. Saí da entrevista com uma ordem escrita em que o chefe me recomendava ao comissário da zona onde se acha a Pirâmide, para que me fosse facilitada toda ajuda necessária ao meu intento.
E assim, numa tarde, apresentei-me ao comissário da polícia divisional de Mena, o major Mackersey. Assinei meu nome num livro que me indicaram, com o que a polícia se fazia responsável por minha segurança até o dia seguinte. Um agente recebeu o encargo de me acompanhar à Pirâmide e ordenar ao guarda armado, de sentinela diante do monumento, que ficasse ali durante a noite.
“Corremos um grande risco deixando o senhor só dentro da Pirâmide toda a noite – bramiu com certo humor o major Mackersey, ao nos despedirmos. O senhor não vai explodi-la, vai?”
- Prometo-lhe não somente isso, porém que não me deixarei levar pelos ares com ela!
“Temos que zelar pelo senhor. E como sempre fechamos à chave a grade de ferro da entrada, ao anoitecer, o senhor terá que ficar nosso prisioneiro durante doze horas!”
- Formidável! Neste momento prefiro essa prisão a qualquer outra residência!
O caminho que leva à Pirâmide é ladeado de árvores copadas de LEBBECK; de quando em quando, nas clareiras aparece uma casa à beira da estrada, que no seu trecho final vai subindo, gradativamente, acabando numa íngreme encosta do planalto onde se encontram as Pirâmides. Enquanto percorria aquele trecho, ia pensando se já acontecera no decorrer dos séculos a algum dos numerosos viajantes seguirem aquele mesmo caminho para missão tão estranha quanto a minha.
Subi a pequena colina do lado ocidental do Nilo, onde a Grande Pirâmide e sua fiel amiga, a Esfinge, montam guarda silenciosa sobre a África do Norte.
O gigantesco monumento aumentava diante de mim, à proporção que me aproximava andando pelas areias e pedras. Contemplei, mais uma vez, os flancos triangulares e inclinados daquela obra arquitetônica, a mais antiga que se conhece atualmente no mundo; segui com o olhar esses enormes blocos, da base ao ápice, cuja perspectiva reduz o tamanho à medida que se vai distanciando. A perfeita simplicidade da sua construção, a ausência total de qualquer adorno, a exclusividade da linha reta, são detalhes que não desmerecem de forma alguma a majestosa grandeza da sua criação.
Entrei na silenciosa Pirâmide pela abertura que havia sido descoberta pelo Califa Al Mamun, e comecei minha investigação da estrutura titânica, não pela primeira vez, sem dúvida, mas, sim, pela primeira vez com intenção tão estranha quanto a que me havia arrastado para o Egito, pela segunda vez. Após avançar um trecho, cheguei ao final da brecha horizontal feita pelos homens do Califa, e passei pelo corredor da entrada original.
Com a tocha na mão, a cabeça quase tocando os joelhos, iniciei minha descida pela passagem estreita, baixa, resvaladiça e comprida, na continuação do primeiro corredor. Minha estranha posição era sumamente incômoda e o declive do chão de pedra obrigava a acelerar a velocidade na descida.
Querendo ficar mais tempo na Câmara do Rei, comecei por fazer um exame minucioso da lúgubre zona subterrânea, cujo acesso havia sido interceptado nos últimos tempos por uma comporta de ferro, para evitar, provavelmente, que o público a visitasse e saísse dali semi-asfixiado.
Veio-me à memória um velho adágio latino: “Facilis descensus averni” (1), porém, desta vez havia nessas palavras humor sarcástico. A luz amarelada da tocha deixava-me ver apenas pedras envolvendo-me por todos os lados. Ao fim de um certo tempo, percebi um pequeno patamar à minha direita, que oferecia possibilidade de repouso, e deitei-me para descansar da minha posição incômoda. Descobri que aquela saliência não era mais do que a terminação daquela cova chamada Fossa, que descia desde a encruzilhada da passagem ascendente com a Grande Galeria. O nome de Fossa se conservou e, durante dois mil anos, se acreditava que no fundo dela havia água. Quando Caviglia mandou limpá-la dos escombros milenares, descobriu-se que o fundo estava completamente seco.
Essa passagem era ainda mais estreita do que a outra. Toscamente cavada na sólida rocha, era tão baixa que chegava a roçar minha cabeça; havia nela pequenas cavidades, paralelas que serviam de apoio na relativamente perigosa subida.
Leva através de uma desigual, tortuosa e longa extensão, e desemboca num recinto cavado na pedra em forma de uma abóbada, conhecido agora sob o nome da Gruta, que marca o nível do planalto rochoso no qual foi levantada a Pirâmide. A Gruta, parcialmente feita por alargamento natural da brecha existente na rocha, parecia ter sido cavada na alvenaria e não construída com blocos de pedras como todas as demais passagens subterrâneas. Essa parte onde estava a Fossa diminuída de largura, dificultando mais ainda a subida.
Finalmente consegui atravessar, e saí pela escabrosa e irregular abertura da boca da Fossa, que liga o extremo nordeste à Grande Galeria.
Por que foi aberta aquela Fossa no corpo maciço da Pirâmide? A pergunta surgiu automaticamente e, quando ela girava no meu cérebro, de súbito me veio a resposta. Os antigos egípcios que encerraram a história da Pirâmide, ao retirar-se, taparam com três monstruosos tampões de granito a entrada da Grande Galeria e das Câmaras, idealizando uma via de escape para que eles próprios não ficassem presos, sem possibilidade de saída.
Eu sabia, por minhas próprias investigações, que a Fossa e a Gruta haviam sido escavadas na época da construção da Pirâmide, quando a Fossa não descia tanto quanto a Gruta naquele tempo. Durante milhares de anos não havia nenhuma comunicação direta entre as passagens superiores e subterrâneas.
Quando a Grande Pirâmide cumpriu seu misterioso propósito, aqueles que eram os responsáveis fecharam-na. O fechamento havia sido previsto pelos construtores, que deixaram preparados os elementos necessários e até fizeram uma construção especial, no extremo inferior da passagem ascendente, para guardar três tampões de granito.
Os últimos ocupantes da Pirâmide mandaram os pedreiros escavar a seção baixa da Fossa para se assegurarem uma saída. Concluída a tarefa, na retirada não tiveram mais que bloquear a saída recém-cavada da Fossa, onde se une com a passagem descendente, e subir os noventa e dois metros até a entrada original do monumento. Assim, a chamada Fossa que havia sido construída originalmente para chegar à Gruta, por fim tornou-se um meio para deixar a bloqueada Pirâmide.
Retornei pelo acesso mais fácil ao longo túnel em declive, que liga as entranhas da Pirâmide ao mundo exterior, para recomeçar minha descida nas profundezas do rochoso planalto de Giseh. Então, cruzou-se comigo um vulto imenso; de súbito, voltei-me assustado e vi que era minha própria sombra! Nesse lugar fantasmagórico podia-se esperar surgir qualquer coisa, e nada era demasiado estranho para acontecer. Engatinhando e arrastando-me, venci a distância relativamente curta que faltava para descer à passagem em declive e, com grande alívio, respirei, chegando enfim ao terreno horizontal; estava dentro de uma nova passagem, menor ainda do que a anterior. Avancei arrastando-me uns dez metros e parei diante da entrada do recinto mais estranho que jamais tinha visto, a chamada Cova. Tinha quinze metros de largura de parede a parede.
Aquela cova sombria ficava exatamente abaixo do nível, no centro da Pirâmide; dava a impressão de ter sido apressadamente abandonada; de uma escavação que tivesse sido interrompida repentinamente. O teto estava bem lavrado, mas o chão subia e baixava como o de uma trincheira bombardeada. Os antigos pedreiros egípcios costumavam construir as abóbadas escavando na rocha de cima para baixo e deixando o chão para o fim. Por que razão não haviam terminado aquele chão, quando dedicaram mais que uma vida de labor para construir a superestrutura que se levanta na base rochosa, é um enigma arqueológico que ninguém pode desvendar. Aliás, como toda Pirâmide, é uma incógnita indecifrável.
Prossegui, com a luz de minha tocha focalizando através da densa escuridão as desigualdades do solo, e detive-me diante de um profundo precipício, mudo testemunho das escavações dos buscadores de tesouros, que o haviam aberto laboriosa e infrutiferamente, um legado dos seus vãos esforços. Um morcego voou sibilando por cima de minha cabeça, fazendo-me sentir o desagradável contato de suas asas, voando na atmosfera rarefeita do ambiente. Notei que a luz da tocha havia despertado outros três morcegos que dormiam no fundo da cova, de cabeça para baixo, nas rugosidades da rocha. Afastei-me, despertando mais dois que dormiam presos ao teto; alarmados e atordoados pela luz com a qual os persegui impiedosamente, com ruído surdo voaram de um lado para outro, até que desapareceram na escuridão da boca da entrada.
Subindo e descendo, cheguei ao outro extremo do recinto, onde percebi uma pequena abertura suficientemente ampla para que o meu corpo passasse, mas tão baixa que só se podia entrar de rojo, o rosto tocando o chão coberto de grossa camada de pó acumulado durante alguns milhares de anos. A tarefa não era nada agradável, mas passei, ansioso por conhecer aonde levava o túnel. Após ter-me arrastado uns vinte metros, o túnel acabou bruscamente. Ali também dava a impressão de não ter sido acabado.
Meio asfixiado, retrocedi, às escuras, da sufocante cova; lancei um olhar ao redor do recinto e iniciei minha caminhada de regresso as partes superiores da Pirâmide. Cheguei à passagem em aclive, seguindo em linha reta cento e seis metros cavados na rocha maciça, antes de continuar minha exploração do corredor construído em alvenaria. Sentei-me no chão e pela abertura pus-me a observar o céu escuro, como através de um gigantesco telescópio sem lentes. Ali estava a Estrela Polar, ponto prateado bem visível no azul-escuro da noite. Verifiquei a direção com a minha bússola-pulseira: assinalava exatamente o Norte. Aqueles construtores primitivos não somente haviam idealizado uma obra maciça, mas também precisa.
Voltei, arrastando-me pela passagem íngreme e cheguei finalmente ao estreito corredor horizontal que leva à Câmara da Rainha. Mais alguns passos, e estava sob a abóbada de vigas convergentes. Examinei os condutos de ar que subiam as paredes na direção norte-sul. Eram uma prova evidente de que a sala não estava destinada a ser um túmulo, mas um recinto de uso para pessoas vivas. Quando no ano de 1872 foram descobertos os condutos, estavam encaixados uns doze centímetros dentro das paredes. Esta descoberta desconcertou muitos investigadores, porque nesse caso não eram canais de ventilação, mas deviam ter servido para qualquer outro uso desconhecido. A melhor explicação desse fato é que em determinado momento e uma vez alcançado seu objetivo, os orifícios e os tubos foram tapados com blocos especiais de pedra, como o fizeram com as passagens superiores da Pirâmide.
Os tubos de ar foram encontrados casualmente por Waynman Dixon, engenheiro civil que estava realizando alguns trabalhos nos arredores da Pirâmide. Examinando, por mera curiosidade, as paredes da Câmara da Rainha, avistou que, em certo lugar, uma delas parecia ser oca e ligeiramente danificada. Fez quebrar a parede naquele ponto, e a doze centímetros de profundidade descobriu um pequeno conduto; pelo mesmo processo, então, encontrou um outro tubo na parede oposta. Ambos os condutos atravessavam todo o corpo da Pirâmide, fato que se verificou mais tarde mediante sondas de ferro, numa extensão maior que sessenta metros.
Voltei à passagem horizontal e caminhei até o ponto de encontro com a Grande Galeria. Subi lentamente quarenta e cinco metros daquele corredor íngreme, ladeado de morcegos. Enquanto subia, senti-me ligeiramente indisposto pela fome, conseqüência do meu jejum de três dias. Descansei alguns minutos num degrau de um metro de altura, que marcava o fim da Galeria, o ponto exato por onde passava o eixo vertical da Pirâmide. Dei mais alguns passos para atravessar a Antecâmara, agachei-me para passar por baixo do bloco de granito que barra horizontalmente a entrada, e cheguei à sala mais importante da Pirâmide, a famosa Câmara do Rei.
Aqui também a presença de tubos, cada um com cerca de cinqüenta centímetros quadrados, destruía a teoria do túmulo. As bocas não estavam fechadas como as da Câmara da Rainha, mas apenas obstruídas com pedras soltas, que o coronel Vyse teve de tirar para averiguar a natureza dos condutos. É mais provável que a obstrução tivesse sido feita ao mesmo tempo que as demais operações, quando os últimos ocupantes da Pirâmide quiseram ocultar a disposição interna de sua parte superior.
Projetei a luz da minha tocha sobre as paredes desnudas e o teto plano, admirando mais uma vez a extraordinária perícia com que se uniam os enormes blocos de granito polido, cuidadosamente observando as paredes, examinando, uma por uma, todas as pedras em redor. Os blocos rosados da longínqua Siene foram quebrados aqui e acolá por interessados nos tesouros, deixando enormes fissuras na sua superfície lisa. O chão também testemunhava a busca febril e vã da avidez humana. No lado leste do solo faltava um pedaço de pedra que havia sido substituído por terra socada, e no nordeste um profundo orifício retangular ficou sem ser remendado. Um grande bloco de pedra rugosa, que havia ocupado aquele espaço estava ao lado apoiado contra a parede, por sorte, deixado pelos primitivos árabes. Paralelo ao bloco, a poucos centímetros de distância, estava o sarcófago, um caixão de granito vermelho, polido, sem tampa. Era o único objeto, salvo o bloco, que se podia ver naquela sala de mobília tão escassa. Estava colocada exatamente na direção de Norte ao Sul.
O bloco deslocado do chão oferecia possível assento. Sentei-me de pernas cruzadas, disposto a passar ali o resto da noite.
À minha direita, coloquei o chapéu, casaco e sapatos; à esquerda, deixei a tocha, ainda acesa, uma garrafa térmica com chá quente, e outra de água gelada, um caderno de notas e uma caneta Parker. Olhei em redor da sala, detive o olhar no sarcófago, que estava em frente de mim, e apaguei a luz.
Ao alcance da minha mão estava, pronta a funcionar, em caso de necessidade, uma possante lâmpada elétrica.
A súbita imersão no escuro trouxe consigo a incerteza do que poderia ocorrer no transcurso da noite. A única coisa que podia fazer nessa estranha situação, era aguardar... esperar...
Os minutos passavam lentamente, enquanto ia me relaxando aos poucos e “sentindo” a atmosfera carregada, própria do ambiente, que só se podia denominar “psíquica”. Consenti que a minha mente se tornasse receptiva, a sensibilidade passiva, e negativa a minha atitude, desse modo tornando-me um verdadeiro registro de qualquer manifestação supra-física que viesse a produzir-se. Não queria que nenhum preconceito pessoal ou receio entravasse a percepção que me afluísse de alguma fonte inacessível aos cinco sentidos.
Gradualmente foi diminuindo o fluxo do meu pensamento, até que minha mente entrou em estado de semi-vacuidade.
O silêncio que envolvia meu cérebro me fez agudamente cônscio da quietude que se apoderava de mim. A vida com seu bulício, mexericos e problemas, era algo muito distante, direi até quase inexistente. Das trevas circundantes não saía nenhum ruído nem um murmúrio. O silêncio, o verdadeiro soberano, reinava no império da Pirâmide; silêncio que se iniciou na pré-história e que os turistas com seu falatório não puderam quebrar – o silêncio profundo que todas as noites se reintegrava no seu reino, dominou, envolvendo todo o meu ser.
Senti a vibração poderosa do ambiente. É uma sensação muito sutil, a mesma que sentem as pessoas sensíveis na atmosfera das casas antigas. A medida que o tempo passava, ia se intensificando a impressão da incomensurável antiguidade que me rodeava; o século XX parecia distanciar-se, diluir-se e deslizar da minha memória. No entanto, de acordo com minha própria decisão, que me havia imposto, longe de resistir a essa sensação, deixei-a robustecer-se.
Começou a se manifestar uma estranha impressão de que não me achava só. Senti insidiosamente sob a capa de trevas absolutas a existência de algo vivo; a sensação, embora vaga, era real e, com a crescente convicção de retroceder ao passado, aumentava-me a certeza de uma presença “psíquica”.
Apesar dessa impressão de que uma vida sutil palpitava nas sombras, não se manifestava nada de concreto. Corriam as horas e, ao contrário de tudo que esperava, ao passo que avançava a noite, aumentava o frio. Os efeitos de três dias de jejum que deliberadamente observei para afiar minha sensibilidade, manifestaram-se em forma de calafrios, cada vez mais intensos. O ar fresco que vinha pelos tubos de ventilação atravessava meu leve agasalho. O corpo tremia sob a camisa; assim, tive que me levantar e pôr o casaco que poucas horas antes havia deixado por não agüentar o intenso calor. É comuníssimo no Oriente em certas épocas do ano: calor tropical durante o dia e forte baixa de temperatura durante a noite.
Até agora ninguém descobriu as bocas dos tubos de ar do exterior da Pirâmide, embora se conheça aproximadamente sua posição. Alguns egiptólogos duvidaram até que os canais tivessem uma ligação com o exterior, porém o total esfriamento do ar que verifiquei aquela noite, deixa definitivamente claro esse pormenor.
Retomei meu assento no bloco de pedra e entreguei-me ao aterrorizador silêncio de morte que reinava na Câmara do Rei e às dominantes trevas que a envolviam. Com o espírito dócil prossegui na minha expectativa. Sem razão aparente recordei que ali, a Oeste, o Canal de Suez seguia seu curso em linha reta entre as areias e pântanos, e o majestoso Nilo formava a coluna vertebral do país.
A profunda quietude sepulcral do aposento, o sarcófago vazio a meu lado, de certo, não contribuíram para serenar-me os nervos, quando, além do mais, minha sensação continuava a acusar a presença viva, embora invisível, de seres que me rodeavam, convertendo-se numa certeza. Sim, havia algo que palpitava ao meu lado, vivo, embora não visse absolutamente nada. Até perceber de súbito a imprudência em que me colocara, compreendi minha situação. Estava só, isolado num estranho recinto, a mais de sessenta metros de altura, envolto numa escuridão impenetrável, prisioneiro numa temível edificação lendária a centenas de quilômetros, a construção mais antiga do mundo e ladeada por um dantesco e revolvido cemitério de uma velha metrópole que se alçava no limiar de um deserto.
Não havia mais dúvida para mim, que havia aprofundado os mistérios do ocultismo, a magia e feitiçaria do Oriente, o lado psíquico do ser, de que a sala da Câmara do Rei se povoara de seres invisíveis, espíritos que guardavam a Pirâmide. Esperava ouvir em qualquer momento uma voz espectral que saísse daquele silêncio avassalador. Dava graças aos construtores por haverem instalado aqueles tubos que proviam de ar fresco, reduzido, porém constante, que percorria uns noventa metros na Pirâmide antes de chegar aquele recinto, mas de qualquer modo bem-vindo. Sou um homem acostumado à solidão, na qual sempre me deleitei, mas a solidão daquela sala tinha algo de temerário e pavoroso.
As trevas envolventes começaram a oprimir-me a cabeça, qual um elmo de ferro. A sombra do medo indizível fez estremecer todo meu ser; afugentei-a imediatamente. Para permanecer no coração daquele monumento do deserto, necessita-se não somente coragem mas também uma certa fortaleza moral. Não havia serpentes saindo dos buracos ou fendas, nem malandros desabrigados trepando pelas faces íngremes da Pirâmide para entrar calmamente à noite. Os únicos sinais de vida animal que encontrei, foram os de um rato no corredor horizontal que, espantado pela luz da tocha, correu desesperadamente, tentando inutilmente encontrar um refúgio nas pedras lisas de granito; dos lagartos verde-amarelados, incrivelmente velhos, colados ao teto na estreita passagem da Câmara da Rainha e, finalmente, dos morcegos da cova subterrânea. Havia também, é certo, os grilos, que me receberam com prolongado chirrio quando cheguei na Grande Galeria, mas não demoraram a calar-se. Tudo isso estava para trás, e nesse momento só havia o silêncio invencível que me mantinha preso ao seu mudo cativeiro. Não havia nada de natureza física que pudesse me fazer algum dano, e não obstante, voltou a assaltar-me, pela segunda vez, essa vaga inquietude causada por olhos invisíveis que me fitavam. Neste lugar havia fantástico mistério, uma irrealidade espectral...
Há vibrações de força, som e luz que estão além de nosso alcance normal de captação. Os ouvintes radiofônicos ouvem canções alegres e discursos sérios que, num relâmpago, atravessam o espaço e lhes vêm pelo éter, e que sem seus aparelhos devidamente sintonizados, nunca poderiam captar. Saindo de simples espera receptiva, passei à concentração mental, focalizando toda a minha atenção num esforço para atravessar o negro silêncio que me rodeava. Se minha faculdade de percepção fosse temporariamente elevada acima do normal, quem sabe não me seria possível perceber a presença das forças invisíveis?
Sei que, no momento em que me “sintonizei” pela introversão, cujo método aprendi muito antes da minha segunda visita ao Egito, a Câmara do Rei foi invadida por forças hostis. Senti no ambiente algo de maléfico e perigoso, que me provocou arrepios. Mal meu coração sossegava, tornava a agitar-se; um temor insistente começou a dominar-me. Tornei a intensificar minha concentração, fixa num só ponto, e a sensação, seguindo seu treino usual, transformou-se em visão. Sombras começaram a surgir de todos os lados e gradualmente foram tomando formas mais definidas; de súbito apareceram rostos hediondos, tão próximos que quase tocaram meu próprio rosto. Imagens sinistras me surgiam com toda nitidez ante os olhos da minha mente. Uma aparição tenebrosa avançou até perto de mim, e olhou-me fixamente com olhos vesgos e sinistros, levantando as mãos num gesto de ameaça, querendo atemorizar-me. Espíritos macróbios pareciam sair da vizinha necrópole, necrópole tão velha como as múmias pulverizadas dentro dos seus sarcófagos de pedra. Fantasmas que estavam presos aos seus túmulos, vieram, provocantes, expulsar-me do meu lugar de vigília. Todas as lendas de assombrações malignas, relatadas pelos árabes de uma aldeia vizinha, voltaram-me à memória com os mesmos pormenores desagradáveis. Quando comuniquei a um jovem árabe, amigo meu, morador daquela aldeia, minha intenção de passar a noite na velha Pirâmide, fez tudo para me dissuadir.
“Cada pedaço de terra está mal-assombrada” - advertiu; - “dentro da Pirâmide há todo um exército de fantasmas, repleta que está de espectros e gênios”.
Agora via que sua advertência não havia sido em vão. Figuras espectrais continuavam a chegar, rodeando o recinto escuro. A inquietação indefinível e o mal-estar, que me haviam dominado há pouco, foram plenamente justificados. No centro daquele corpo que era meu, o coração batia às marteladas. Medo, espanto, horror, persistentemente me mostravam suas faces perversas; sem querer fechei os punhos com força. Mas eu estava decidido a prosseguir, e embora as formas sepulcrais que transitavam pelo recinto e haviam começado por despertar-me o sentimento de alarme, acabaram por me provocar o incitamento de todas as minhas reservas preciosas de coragem combativa.
Embora tivesse os olhos fechados, aquelas formas cinzentas, vaporosas, viscosas, penetravam na minha visão interior sempre com o mesmo antagonismo implacável, numa sinistra determinação de impedir-me o cumprimento do meu intuito.
O círculo de seres antagônicos se estreitava. Querendo, podia acabar com essa visão facilmente; bastava acender a luz de minha lâmpada, saltar do meu assento e correr algumas centenas de metros até a entrada onde a sentinela armada me proporcionaria um alívio imediato. A prova era dura e me impunha a tortura em sua forma mais sutil; atormentava-me a alma deixando o corpo intacto. Algo no meu interior me intimava com igual inflexibilidade, a ficar firme no meu intento.
Chegou o momento culminante. Cercaram-me mais criações elementais, malignos, horrores do submundo, figuras de aspecto grotesco, insano e diabólico, cercaram-me, provocando-me repulsa intolerável. Vivi alguns instantes que jamais esquecerei. Aquela cena incrível me ficou vivamente gravada na memória, e seus momentos nunca desejarei repetir - jamais voltarei a pernoitar na Grande Pirâmide.
O fim chegou de repente. Com uma celeridade alarmante, os perniciosos invasores espectrais desapareceram nas trevas das quais haviam surgido e voltaram ao reino sombrio dos defuntos e das baixas esferas, levando consigo sua comitiva de horrores diabólicos. Meus nervos ressentidos tiveram um grande alívio, semelhante ao do soldado, quando bruscamente cessa o bombardeio.
Não sei quanto tempo se passou antes de eu sentir uma nova presença de alguém que, benévolo e amistoso, veio à Câmara do Rei, olhando-me com afabilidade. À sua chegada o ambiente tornou-se leve, o ar da pureza parecia envolvê-lo. Minha excitada sensibilidade sob o efeito desse novo elemento, como se tivesse ingerido um sedativo, acalmou-se. O recém-chegado aproximou-se do meu assento de pedra e vi então que o acompanhava uma outra figura. Ambas se detiveram ao meu lado e fixaram-me com ar grave, olhar carregado de profético significado. Pressenti que os momentos cruciais da minha existência estavam em suas mãos.
Na minha visão, aqueles dois seres formavam um quadro inesquecível. Quando escrevo, tudo volta aos olhos da minha mente: suas túnicas brancas, os pés calçados de sandálias e o aspecto venerável das suas altas figuras. Levavam as inconfundíveis insígnias dos seus cargos; eram os Sumos-Sacerdotes do antigo culto egípcio. Rodeava-lhes a cabeça um halo brilhante que, de maneira estranha, iluminava uma parte do aposento. Na verdade, pareciam mais do que homens, pela sua luminosa presença, e a calma compenetrada dos seus rostos assemelhava-os a semi-deuses.
Permaneceram imóveis como estátuas, de mãos cruzadas sobre o peito, contemplando-me em silêncio.
Estaria eu em alguma quarta dimensão, mergulhado em longínqua época do passado, mantendo minha mente alerta? Havia eu retrocedido minha noção de tempo, à era primitiva do Egito? Não; isso parecia não ser, pois, nitidamente percebia que aqueles dois espíritos me viam e estavam prestes a dirigir-me a palavra.
Suas altas figuras se inclinaram; uma delas aproximou seu rosto do meu; no seu olhar luminoso brilhava ardor espiritual e seus lábios pareciam mover-se; uma voz ressoou nos meus ouvidos.
“Por que vieste a este lugar” - perguntou – “procurando evocar poderes secretos; não te bastam os caminhos dos mortais?”
Eu não ouvi essas palavras com meu ouvido físico; nenhuma vibração sonora perturbou o silêncio da noite. Parecia ouvi-las como ouve um surdo pelo aparelho artificial elétrico à guisa de tímpano, porém com uma diferença: ressoavam na parte INTERNA do tímpano. A voz que chegava a mim, para dizer mais exatamente, era como se fosse um voz mental, porque a ouvia seguramente dentro de meu cérebro, porém que poderia dar impressão errônea de que fosse um simples pensamento. Não era isso, não era um pensamento; era sim, uma VOZ.
- Não, não me bastam! - respondi.
“A agitação das multidões nas cidades reconforta o coração trêmulo do homem” - disse – “Volta a reunir-te a teus semelhantes e não demorarás a esquecer o frívolo anseio que te trouxe aqui”.
- Não, não pode ser, - tornei a responder.
Ele fez uma nova tentativa:
“O caminho que escolheste te afastará dos limites da razão; alguns o seguiram e voltaram loucos. Vai-te agora, pois, ainda há tempo, e segue o caminho traçado para os pés dos mortais!”
Abanei a cabeça e murmurei:
- Pois eu devo seguir este caminho; agora não há outro para mim.
O sacerdote deu mais um passo adiante e inclinou-se perto de mim. Vi seu rosto sulcado destacar-se nas trevas.
“Aquele que entra em contato conosco - sussurrou-me ao ouvido - perde seu vínculo com o mundo. Serás tu capaz de andar só?
- Não sei, respondi.
Da escuridão ouvi ressoar suas últimas palavras:
“Assim seja. Escolheste. Pela tua própria decisão não podes mais retroceder”.
Desapareceu. Fiquei com o outro espírito que até esse momento não havia desempenhado nenhum papel, senão o de testemunho silencioso.
Aproximou-se e ficou à frente do sarcófago de mármore. Seu rosto era de um verdadeiro macróbio. Não me aventurei a conjeturar idade.
“Meu filho” - disse serenamente, virando-se para mim – “os poderosos senhores das potências secretas tomaram conta de ti. Esta noite serás conduzido à Sala do Saber. Deita-te nessa pedra! Antigamente, sendo um leito, teria sido revestido de folhas de papiros”. Indicou o sarcófago.
Não me ocorreu fazer outra coisa senão obedecer o meu estranho visitante. Deitei-me de costas sobre a fria pedra de mármore.
O que sucedeu logo depois, não o vejo com muita clareza, pois foi como se inesperadamente me tivessem dado uma dose de algum anestésico de ação lenta; todos os meus músculos ficaram tensos e uma paralisante letargia começou a invadir-me os membros. O corpo ficou pesado e endurecido. A princípio, meus pés começaram a esfriar-se lentamente; o frio foi subindo, subindo imperceptivelmente, chegando até os joelhos, e prosseguia seu avanço, gelando-me. Era como se ao escalar uma montanha me tivesse afundado até a cintura num montão de neve. Meus membros inferiores estavam completamente paralisados.
Em seguida passei a um estado de semi-entorpecimento, e na minha mente surgiu um vago pressentimento de que meu fim estava próximo. Contudo, não me perturbei; há muito tempo livrei-me do velho medo da morte, e cheguei a aceitá-la filosoficamente como sendo inevitável.
Enquanto a estranha sensação de frio continuava a apoderar-se de mim, subindo pela coluna vertebral e dominando todo o meu corpo, senti minha consciência concentrar-se e fixar-se num só ponto do cérebro, a respiração ficar cada vez mais dificultosa.
Subindo ao peito, paralisou totalmente o corpo, algo semelhante a um ataque cardíaco sobreveio, mas não demorou; compreendi então que a crise suprema não tardaria a chegar.
Se pudesse mover minhas mandíbulas enrijecidas, daria uma risada do pensamento que me ocorreu nesse instante; pensei: amanhã acharão meu cadáver deitado no sarcófago da Câmara do Rei, e tudo terminará para mim.
Tinha certeza de que todas as minhas sensações eram conseqüências da migração do espírito de vida física às regiões do Além-túmulo, e qualquer resistência seria vã.
Por último, minha consciência concentrada se confina apenas na cabeça, e houve no meu cérebro um tremendo redemoinho final, tive a impressão de que um tufão tropical me arrastava, lançando-me em seu rodopio no ar. Um temor momentâneo apoderou-se de mim. Senti-me lançado no espaço infinito, voando para o desconhecido.
Estava LIVRE!
Nenhum outro termo poderia expressar o delicioso sentimento de liberdade absoluta que me saturou. Transformei-me num ser mental, num ente cujas sensações e pensamentos estavam livres dos entraves do corpo de matéria inerte em que estava fechado. Desprendido do meu invólucro carnal, como um fantasma do seu sepulcro, sem, todavia, nenhuma obnubilação de consciência; pelo contrário, estava ciente de mim mesmo e essa sensação era muito mais forte que dantes. E, além do mais, depois de haver passado aquela migração de um estado para outro, e de ter ficado em quarta dimensão, proporcionou-me um sentimento de felicidade; senti-me livre, terminantemente, bem-aventuradamente, LIVRE.
A princípio, vi-me estendido na mesma posição horizontal do corpo que acabava de deixar, flutuando acima do sarcófago. Depois, tive a impressão de que uma mão invisível me fazia girar verticalmente até pôr-me de pé. E, finalmente, experimentei a curiosa sensação de estar simultaneamente de pé e flutuando.
Olhei o corpo abandonado, de carne e osso, que jazia prostrado e rígido na pedra. O rosto inexpressivo estava voltado para cima, os olhos entreabertos cujo brilho das pupilas indicava que as pálpebras não estavam completamente fechadas; de mãos cruzadas sobre o peito, postura que não me recordo ter adotado. Alguém as havia cruzado sem que eu o percebesse? As pernas e os pés esticados se tocavam. Aquele era meu corpo, aparentemente morto, do qual me havia retirado.
Notei que eu, esse novo eu, desprendia um fio de suave luz prateada que se projetava sobre o ser cataléptico deitado dentro do sarcófago. A descoberta me surpreendeu, porém maior foi minha surpresa quando descobri que o misterioso cordão umbilical psíquico contribuía para iluminar o canto da Câmara do Rei onde eu pairava. Uma claridade suave, semelhante à luz da lua, iluminava as paredes de pedra.
Eu não era mais do que um fantasma, um ser, sem corpo, flutuando no espaço. Compreendi porque os sábios egípcios de outrora representavam nos seus hieróglifos a alma em forma simbólica de um pássaro. Senti incrível leveza, como se tivesse um par de asas e voasse qual um pássaro que levanta o vôo rodeando em volta de um ponto, tão livre que estava flutuando no grande vácuo que me cercava. Sim, o simbolismo do pássaro era muito acertado.
Desprendida minha alma do seu invólucro mortal, levantou vôo no espaço, abandonando o corpo que lhe servia de habitat. Agora estava com o outro corpo, etéreo e extremamente leve. Olhando o mármore frio em que jazia meu corpo, surgiu na minha mente uma singular idéia, ou melhor, foi uma compreensão brusca que tomou forma nas seguintes palavras insonoras:
“Este é o estado da morte. Agora eu sei que sou uma alma, que eu posso existir separado do corpo. Sempre acreditarei nisso, porque o experimentei.”
Essa noção se aferrou a mim tenazmente, enquanto permanecia suspenso no ar, acima do meu próprio corpo abandonado e sem vida. Comprovei a sobrevivência da maneira mais satisfatória a meu ver, isto é, pela experiência de morrer e ser vivo! Continuei observando os restos mortais que havia deixado. De certo modo me fascinavam. Era eu aqui, esse corpo sem vida que durante tantos anos considerei como se fosse eu? Naquele momento vi com toda clareza que era apenas a massa de substância carnal desprovida de consciência e de raciocínio. Contemplando os olhos sem visão, insensíveis e vidrados, percebi a máxima ironia da situação: Meu corpo terrestre havia me aprisionado, retendo meu verdadeiro Ser, obrigado a caminhar de um lado para outro na superfície do globo, nascido num organismo que tanto tempo confundi com meu verdadeiro Eu. Agora eu era livre.
A força de gravidade não atuava no ar, e a estranha sensação de estar meio suspenso e em pé persistia.
Ao meu lado, de súbito, apareceu o sacerdote macróbio; grave e solene, levantou os olhos para o céu, deixando perceber seu rosto mais enobrecido ainda, e com reverência, lançou esta prece:
“Ó Amon, Ó Amon que estás no céu! volta tua face para o corpo morto do teu filho, e concede-lhe teu beneplácito no mundo espiritual. Tudo consumado. E voltando-se para mim, disse: ‘Agora aprendeste a grande lição. O HOMEM CUJA ALMA NASCEU DO ETERNO, NAO PODE MORRER. Proclama esta verdade com palavras inteligíveis para os homens. Alerta-te!”
Vi surgir do espaço o rosto já quase esquecido de uma mulher, cujo sepultamento assisti há mais de vinte anos. Depois apareceu o semblante familiar de um homem que havia sido para mim mais que um amigo, o qual vi pela última vez há doze anos, repousando no seu ataúde e, finalmente, a doce imagem sorridente de uma criança, morta num acidente. Os três me olhavam com uma expressão serena e suas vozes amigas voltaram a ressoar. Mantive a mais breve das conversações com os chamados mortos, que não tardaram a se desvanecer.
“Também eles vivem como vives tu, e como vive esta Pirâmide que presenciou o morrer de milhões de criaturas - disse o sumo sacerdote - Sabe, filho meu, que nesse antigo santuário se encontra a história perdida das primeiras raças da humanidade e a Aliança que fizeram com o Criador mediante o primeiro dos seus profetas. Sabe também que, antigamente, a este lugar eram trazidos homens escolhidos a fim de mostrar-lhes a Aliança, os quais, ao voltar aos seus semelhantes, manteriam vivo o grande segredo. Leva contigo esta advertência: quando os homens renegarem seu Criador e olharem com ódio uns aos outros, como os príncipes da Atlântida, em cuja época foi construída esta Pirâmide, serão destruídos pela sua própria iniqüidade, como foi aniquilado o povo da Atlântida.”
“Não foi o Criador quem fez submergir a Atlântida, mas o egoísmo, a crueldade, a cegueira espiritual dos habitantes dessas ilhas condenadas. O Criador ama a todos indistintamente, porém a vida dos homens está governada por leis invisíveis que Ele impõe. Leva, pois, essa advertência contigo”.
No meu íntimo nasceu um grande desejo de ver essa misteriosa Aliança. O sacerdote devia ter lido o meu pensamento, pois se apressou a dizer:
“Todas as coisas vêm no seu devido tempo. Ainda não, meu filho, ainda não”.
Senti-me desapontado.
Fitou-me durante alguns instantes.
“A nenhum homem do teu povo foi permitido vê-la ainda, mas porque és versado nestes assuntos e vieste aqui com o coração aberto e compreensivo, é justo que recebas alguma satisfação. Vem comigo!”
Passou-se então algo estranho. Parecia-me cair em estado comatoso, minha consciência se enevoou momentaneamente e, quando a recuperei, percebi haver sido transportado para outro lugar. Estava num longo corredor, apenas iluminado, embora não se vissem lâmpadas nem janelas. Supus que a fonte luminosa vinha do halo que emanava do meu companheiro, junto com a irradiação do cordão luminoso de éter vibrante que se desprendia de mim. Compreendi, no entanto, que esses focos ainda não explicavam a luz reinante. As paredes eram revestidas com pedras refulgentes de cor terracota-rosada, e tão unidas entre si que não se percebiam as juntas. O chão tinha a mesma inclinação da passagem da entrada da Pirâmide. Todos os arremates estavam bem acabados. O corredor, embora baixo, não chegava a ser incômodo. Não pude descobrir a fonte dessa misteriosa iluminação; o interior luzia como se ali estivesse uma lâmpada acesa.
O Grão-Sacerdote fez-me um gesto para segui-lo.
“Não olhes para trás - ordenou - não voltes a cabeça!”
Caminhamos um trecho, descendo; chegamos ao fim do corredor e paramos diante de uma entrada para a grande câmara com o aspecto de um templo.
Sabia perfeitamente que me encontrava dentro ou embaixo, da Pirâmide, porém não sabia onde ficava essa passagem e aquela câmara; nunca as tinha visto antes. Senti-me extremamente excitado por aquela impressionante descoberta. Curiosidade invencível se apoderou de mim para averiguar onde estava essa entrada. Finalmente, como se fosse arrastado por um impulso imperioso, voltei a cabeça e dei uma rápida espiada, ansioso por ver uma porta oculta. Entrando, não reparei por onde havia passado; contudo, no extremo oposto da passagem onde devia haver uma abertura, não vi nada senão os grandes blocos visivelmente cimentados. Estava olhando uma parede! Nesse momento, uma força irresistível me arrastava; a cena se anuviou e encontrei-me de novo flutuando no espaço. Ouvi as palavras, repetidas como um eco “ainda não, ainda não...” e momentos depois vi meu corpo inconsciente, estendido sobre a pedra. A voz do Sumo Sacerdote chegou-me em sussurro:
“Meu filho, não tem importância o descobrires ou não a entrada. Busca em tua própria mente a passagem secreta que te levará à câmara oculta em tua alma, e encontrarás algo realmente valioso. O mistério da Grande Pirâmide é o mistério do teu próprio ser. As câmaras secretas e os registros do passado devem todos estar contidos em tua própria natureza. A Pirâmide ensina que o homem deve voltar-se para si próprio, deve aventurar-se a penetrar até o centro desconhecido de seu ser, e ali encontrar sua alma, tal qual se aventura a penetrar nos relicários desconhecidos deste templo, para desvendar seu mais profundo segredo. Adeus”.
Um turbilhão se apoderou de minha mente; arrebatado por uma força que me puxava para baixo, rodopiei vertiginosamente sempre para baixo. Preso de profundo torpor, parecia-me voltar a fundir-me com meu corpo físico; com todo esforço tentei mover meus músculos endurecidos, mas não me foi possível e, finalmente desmaiei...
Abri os olhos, sobressaltado; trevas espessas me rodeavam. Quando passou o entorpecimento, apanhei a lâmpada e acendi a luz. Estava de novo na Câmara do Rei. Tremendamente excitado, pulei da pedra aos gritos; o eco devolveu minha voz decrescendo. Ao saltar, em vez de pisar o chão, senti que estava caindo num vácuo; salvei-me por haver aberto os braços, ficando suspenso nas bordas. Compreendi então o que se havia passado. Ao levantar-me, corri para o outro extremo do recinto, perdendo o sentido de direção. Minhas pernas bamboleavam dentro da cova escavada no chão a nordeste da Câmara. Alcei-me com toda força e pisei de novo o solo firme.
Apontei a lâmpada para meu relógio. O vidro estava quebrado em dois lugares ao bater a mão contra a pedra quando saltei da cova; contudo, a máquina funcionava continuando seu alegre tique-taque. Vi então a hora e, a despeito da solenidade do lugar, quase dei uma risada: era exatamente a hora melodramática da meia-noite. Ambos os ponteiros assinalavam o número doze!
Quando, logo depois do amanhecer, a sentinela armada abriu a grade de ferro da entrada escura da Grande Pirâmide, saiu dela, cambaleando, uma figura empoeirada, fatigada, com olheiras profundamente marcadas. Começou a andar pelos grandes blocos de pedra fitando pensativo a plana paisagem familiar, iluminada pelo sol da manhã. A primeira coisa que fez foi respirar profundamente, várias vezes, para em seguida erguer instintivamente o rosto para o Rá-sol, e agradecer-lhe em silêncio a bendita e prodigiosa dádiva da luz que tão liberalmente oferecia à humanidade.
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