Ela é acusada de ultraconservadora, totalitária e conspiradora.
Texto Mariana Sgarioni e Mauricio Manuel
Imagine sua mente sendo monitorada 24 horas por dia. Você está num lugar onde não é permitido ver televisão ou ir ao cinema. Até o jornal chega editado às suas mãos. Ninguém pode ter amigos do lado de fora e o contato com a família é restrito.
Pelo menos duas horas por dia, você tem de amarrar um cilício na coxa – espécie de instrumento de tortura com pontas metálicas que machucam a pele. Quanto maior for o seu desconforto, melhor: isso significa que a instituição está exercendo mais controle sobre você. Se doer demais, tudo bem, você poderá trocar de coxa na próxima vez. O importante é que a experiência não passe em branco. Tem de machucar, deixar marcas. Caso contrário, não “faz efeito”.
Castidade
Se tudo isso já parece um pesadelo, saiba que ainda não acabou. Uma vez por semana, você terá também de golpear suas nádegas ou suas costas com um chicote. E ainda passará pelo que é chamado de “sinceridade selvagem”: contar aos seus superiores cada pensamento que passa pela sua cabeça, principalmente aqueles segredos mais íntimos, sobre os quais não se comenta nem no banheiro, de porta fechada e luz apagada. Se você não revelar tudo, mas tudinho mesmo, estará mantendo um “segredo com Satanás”.
As situações descritas acima não ocorrem nos porões de uma ditadura ou no ritual de alguma seita satânica, muito pelo contrário. Elas são rotina nas residências do Opus Dei, onde vivem os chamados numerários – membros da organização religiosa que fazem voto de castidade e estão ali por opção, para “santificar” o mundo. A maioria tem profissão e trabalha normalmente, como outra pessoa qualquer. Mas seus salários vão direto para o Opus. Muitos foram recrutados ainda bem jovens.
“O aliciamento acontece na infância ou na juventude, pois é mais fácil doutrinar uma personalidade ainda em formação. Eles começam levando crianças para brincar numa espécie de clube e vão seduzindo aos poucos”, diz um ex-numerário, que só aceitou falar com nossa reportagem mediante o compromisso de não ser identificado. “Eu mesmo convidava colegas de escola para fazer parte do clube. Obedecia ao que o diretor mandava: ‘Não conte que é do Opus. Leve primeiro para conhecer o centro, faça com que a pessoa se envolva’.”
O Opus Dei não é feito só de numerários: há também os supernumerários. Esses podem se casar, ter filhos e viver em suas próprias casas, embora também recorram à penitência física – ou mortificação corporal – como uma forma de controlar instintos pecadores. Uma das funções secretas desses membros, de acordo com os críticos da organização, seria ocupar posições de liderança na sociedade – seja num cargo político, na direção de uma grande empresa, na presidência de um banco, na reitoria de uma universidade ou na chefia de um veículo de comunicação. Do alto desses postos de comando, a capacidade de expansão e o poder de influência do Opus Dei estariam assegurados.
Trabalho
Pode acreditar: numerários e supernumerários estão por toda parte, talvez bem mais perto do que você imagina. Afinal, é justamente essa a proposta do Opus – ser uma legião de homens e mulheres comuns, que se misturam ao mundo real para transformá-lo de dentro para fora. Do motorista de táxi ao ministro de Estado, da dona-de-casa à diretora de uma multinacional, todos devem ser engrenagens e trabalhar silenciosamente pelos objetivos da organização. Como dizia Josemaría Escrivá, fundador do grupo: “Seja santo. Santifique-se em seu trabalho. E santifique os outros com seu trabalho”.
Quem defende a instituição religiosa das acusações de ultraconservadora, totalitária e conspiradora garante que não há nada de errado com suas tradições, muito menos de secreto ou misterioso nas ações de seus integrantes. “Para quem conhece e vivencia o Opus Dei, acima da pirotecnia fica a verdade: ele é uma entidade da Igreja Católica (...) cuja única finalidade é procurar o ideal da vida e de serviço cristão no meio do mundo, mediante a santificação do trabalho profissional, da família e dos deveres cotidianos”, afirma o jurista Ives Gandra Martins, num artigo publicado pelo jornal Folha de S.Paulo em 2005. “O Opus Dei tem como membros e trabalha com pessoas de todas as classes sociais. Ama e defende a liberdade de seus fiéis em todas as questões que a Igreja deixa à livre discussão dos católicos.”
Autonomia
O Opus Dei – expressão em latim que significa “Obra de Deus” – foi fundado pelo sacerdote espanhol Josemaría Escrivá em 1928. Trata-se de uma prelazia pessoal, figura jurídica da Igreja Católica que está prevista no Código de Direito Canônico (a constituição da Igreja). Ela dá aos seus membros o direito de seguir ordens do prelado (o líder máximo do Opus, que fica em Roma), em vez de obedecer à autoridade católica regional. Simplificando grosseiramente, é como se o grupo fosse um braço independente da Igreja, que não deve explicações a mais ninguém além do papa.
“A ascensão do Opus Dei à categoria de prelazia pessoal era o grande sonho de seu fundador”, escreve o jornalista espanhol Juan Bedoya em artigo recente no jornal El País. “Homem de grandes ambições, Escrivá queria livrar-se das dependências em relação aos bispos porque sua fundação, então com 70 mil integrantes – a imensa maioria leigos, homens e mulheres, celibatários ou casados –, tinha pouco a ver com os institutos e as congregações tradicionais.”
Os 70 mil seguidores de 25 anos atrás hoje são aproximadamente 87 mil. Na avaliação de Bedoya, esses números demonstram com sobras a situação especial desfrutada pelo Opus Dei dentro da sempre rígida Igreja Romana. “No último meio século, ninguém se destacou tanto quanto a Obra de Escrivá”, afirma o jornalista. “Não se pode dizer a mesma coisa de outras congregações clássicas, como os jesuítas, que hoje são apenas 19 mil no mundo todo.” Ainda assim, e apesar de estar presente em 64 países, o Opus continua sendo fundamentalmente espanhol. Na Espanha estão concentrados mais de 40% de seus membros. Outros 35% estão na América Latina. A organização também tem seus pés muito bem fincados na África e na Ásia. “Agora o objetivo é a conquista dos ex-países comunistas do Leste Europeu.”
Nesses 25 anos de história, o Opus Dei colecionou críticos. Alguns de seus detratores mais radicais chegam a chamá-lo de “máfia santa”. Outros o acusam de ser “uma Igreja dentro da Igreja”, com poderes excepcionais e muito dinheiro sendo colocado a serviço de um conservadorismo atroz. Em parte, essa fama se deve às estreitas relações que a organização cultivou com o regime fascista do ditador espanhol Francisco Franco, de 1939 a 1975. Josemaría Escrivá, o próprio, ouvia as confissões do “generalíssimo”, como Franco era conhecido, e muitos integrantes ou colaboradores do Opus Dei foram nomeados ministros de Estado enquanto durou a ditadura.
A organização chegou ao Brasil na década de 1950. Instalou-se inicialmente em Marília, no interior de São Paulo, e de lá acabou migrando para a capital, onde hoje mantém centros nos bairros do Pacaembu, de Vila Mariana, de Pinheiros e do Itaim, entre outros. Está presente também nas cidades de Campinas (SP), São José dos Campos (SP), Rio de Janeiro (RJ), Niterói (RJ), Belo Horizonte (MG), Brasília (DF), Curitiba (PR), Londrina (PR) e Porto Alegre (RS). Entre numerários, supernumerários e sacerdotes, estima-se que o Opus tenha cerca de 1 700 integrantes por aqui.
Preeminência
A influência que a “Obra de Deus” exerce sobre o Vaticano pode ser medida pelo processo incrivelmente rápido de canonização de Escrivá – o 2º mais breve na história da Igreja Romana, atrás apenas do de madre Teresa de Calcutá (leia mais nas págs. 36 e 37). De acordo com Juan Bedoya, o papa João Paulo 2º chegou ao cargo protegido e impulsionado sobretudo pelo Opus Dei. E o atual sumo pontífice também dá sinais de profunda simpatia pela “Obra”. “A organização não gozou de trato especial com os papas Pio 12, João 23 e Paulo 6º, mas foi o movimento predileto do polonês João Paulo 2º, mais conservador que os anteriores”, diz o jornalista espanhol. “Com o papa Bento 16, a organização mantém a preeminência do passado.”
Mãos à obra
Gente importante supostamente ligada ao Opus Dei
Geraldo Alckmin
Foi governador de São Paulo. Nega fazer parte do Opus Dei, mas é tido como o político brasileiro de relações mais estreitas com a organização.
Ives Gandra Martins
Está entre os mais respeitados juristas do Brasil e freqüentaria reuniões do Opus Dei desde 1963. Admite conhecer “intimamente” o grupo religioso há décadas.
Ruth Kelly
Supernumerária, é integrante do Parlamento britânico pelo Partido Trabalhista e já foi secretária de Educação e de Transportes do Reino Unido.
Paola Binetti
Médica, professora universitária e senadora italiana. É numerária. No senado, defende posições conservadoras – contra o aborto e o casamento gay, por exemplo.
Adolfo Suárez
Primeiro-ministro da Espanha de 1976 a 1981, no primeiro regime democrático do país depois da ditadura de Francisco Franco. É supernumerário.
Jesus Estanislao
Foi ministro das Filipinas durante o governo da presidenta Corazón Aquino, de 1989 a 1992. Numerário, é um dos responsáveis pela chegada do grupo àquele país.
Robert Hanssen
Americano e ex-agente do FBI, trabalhou como espião para a URSS por mais de 20 anos. Foi supernumerário, mas abandonou o Opus Dei depois de ser preso.
Luis Valls
Um dos banqueiros mais importantes da Espanha, foi presidente do Banco Popular – o 3º maior do país – de 1972 a 2004. É numerário do Opus.Marcio F. da Silva, Dario F. Ferreira e Jean Lauand, Verus, 2005.• Opus Dei: Os Bastidores
• Memórias Sexuais no Opus Dei
Antônio Carlos Brolezzi, Panda, 2006.Por dentro do Opus Dei
MORTIFICAÇÃO CORPORAL
Cilício nas coxas e chicotadas são rotina para os seguidores.
JOSEMARÍA ESCRIVÁ
O fundador que virou santo.
Fundador do Opus Dei, o sacerdote espanhol – falecido em 1975 – hoje é santo. Nascido no ano de 1902, Escrivá teria resolvido dedicar sua vida ao sacerdócio quando, no rigor do inverno europeu, viu um padre caminhando descalço sobre a neve. Segundo a história oficial, o jovem sentiu-se compelido a seguir o exemplo e também oferecer-se a Deus.
Escrivá afirmava ter tido uma visão depois de ordenado, aos 26 anos: homens e mulheres realizando a “Obra de Deus” e mudando os rumos da história. Assim ele teria tido a idéia de criar o Opus Dei. Depois de fundar a ordem em Madri, no ano de 1928, saiu arrebanhando seguidores. Mas logo esbarraria na Guerra Civil Espanhola, em 1936. Escrivá abandonou a cidade e interrompeu a expansão do Opus, retomando-a só em 1939, com o fim da guerra e a manutenção do ditador Francisco Franco no poder.
POLÊMICO
• Virou santo em tempo recorde, em 2002 (só 27 anos depois de sua morte). Segundo seus críticos, era simpático ao regime totalitário de Franco.
• Foi confessor de Franco e de vários ministros durante a ditadura espanhola.
DISCIPLINA
Chicotadas nas próprias costas é uma das modalidades de autoflagelo à qual os seguidores do Opus Dei recorrem pelo menos uma vez por semana. A pequena corda com nós usada para isso, conhecida como “disciplina”, geralmente não deixa marcas.
NA CARNE
O cilício tem pontas de ferro que penetram na carne. Para a maioria dos numerários, esse tipo de penitência física é uma prática corriqueira: eles passam pelo menos duas horas por dia com esse instrumento de tortura amarrado perto da virilha.
LIVROS PROIBIDOS
O Opus Dei tenta controlar o que seus seguidores lêem. A ordem classifica obras literárias numa escala que vai de 1 a 6: no primeiro nível estão os livros permitidos a todos e no último, os totalmente proibidos. Conheça alguns deles:
• O Capital, Karl Marx
• Além do Bem e do Mal, Nietzsche
• Cândido, Voltaire
• O Evangelho Segundo Jesus Cristo, José Saramago
• O Diário de um Mago, Paulo Coelho
• Presente de um Poeta, Pablo Neruda
• Ulisses, James Joyce
• Madame Bovary, Gustav Flaubert
• Em Busca do Tempo Perdido, Marcel Proust
A CRUZ E O MUNDO
No símbolo oficial do Opus Dei, o círculo representa o mundo e a cruz é a marca do cristianismo inserida nele. Trata-se de uma representação do sonho que Escrivá teria tido aos 26 anos de idade: a “Obra de Deus” alcançando cada canto do planeta, pelas mãos de seus seguidores.
O atual mandachuva.
Este homem é o atual prelado do Opus Dei – cargo máximo do grupo, vitalício – e não responde a mais ninguém além do papa. Espanhol, nascido em 1932, formou-se advogado, especializando-se em direito civil e direito canônico. Entrou para a organização em 1948, com apenas 16 anos, mas só foi ordenado sacerdote em 1955. Dom Javier, como é chamado, foi secretário de Josemaría Escrivá durante 22 anos. É uma das pessoas que mais conheceu o fundador da organização religiosa na intimidade.
Ao assumir o comando em 1994, nomeado prelado pelo papa João Paulo 2º, Echevarría tornou-se o 3º prelado da ordem desde a sua fundação, em 1928. Ele substituiu Alvaro del Portillo, sucessor direto de Escrivá. Dom Javier é conhecido por viajar o mundo inteiro para divulgar a “Obra” e abrir portas para o diálogo entre crenças e culturas distintas.
MISTERIOSO
• Integra a congregação que controla processos de canonização desde 1981.
• É chanceler da Universidade de Navarra e de outras instituições de ensino.
• Ao contrário de Escrivá, prefere manter sua biografia cercada de mistério.
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