Copyright © Isabel A. Ferreira 2008
NOTA
BIOGRÁFICA
Isabel A. Ferreira nasceu em Ovar, distrito de Aveiro (Portugal).
Com apenas dois anos de idade foi para o Brasil, onde iniciou os seus
estudos. Aos oito anos regressa a Portugal. Acabado o ensino básico e o
5º ano do antigo ensino liceal, volteou ao Brasil, tendo aí terminado
com distinção, o 1º ano do Curso de História, na Faculdade de Filosofia,
Ciências e Letras do Rio de Janeiro, (Sociedade Universitária Gama
Filho), o que lhe valeu uma bolsa para continuar os estudos em Portugal,
terminando a licenciatura na Faculdade de Letras da Universidade de
Coimbra, cidade onde completou também um curso de Língua Inglesa.
Frequentou vários cursos de música, ballet clássico e artes plásticas,
seguindo os impulsos de uma natureza inquieta, sempre em busca de algo
que sublimasse a sua existência.
Depois e uma breve passagem pelo Ensino, iniciou a sua carreira
jornalística em 1979, quando criou as páginas infanto-juvenis Cantinho
do Nicolau, que, desde então, manteve, todos os domingos, no Jornal O
Comércio do Porto, até Abril de 1999.
Trabalhou como freelancer, na qualidade de Correspondente de Imprensa,
em diversos jornais diários nacionais (Notícias da Tarde, O Primeiro de
Janeiro, O Comércio do Porto), e semanários regionais, locais e
brasileiros, onde desenvolveu um jornalismo de intervenção, de opinião,
de investigação e reportagem, tendo neles igualmente publicado contos
para crianças e adultos, prosa poética, lengalengas, crónicas, poesia,
cartas abertas, artigos de opinião e desenhos.
Em Maio de 1995, estreia no Porto, a sua peça de teatro infantil No
Reino dos Girassóis, levada a cena pelo Grupo de Teatro do Círculo
Católico d’Operários daquela cidade.
No exercício da sua actividade jornalística foi distinguida com o 2º
Prémio de Reportagem/1985, promovido pelo IPIR (Instituto Português da
Imprensa Regional); uma Menção Honrosa/1990 e o Prémio Especial Europeu
de Jornalismo/1991, atribuídos pelo Conselho de Prevenção de Tabagismo,
com o apoio do Programa «Europa Contra o Cancro», pelo contributo
prestado à luta anti-tabágica em Portugal, destinada às crianças, no
Cantinho do Nicolau; 1º Prémio de Jornalismo «Baptista de Lima/1992»,
atribuído pela Cooperativa de Cultura A Filantrópica, pela colaboração
permanente de intervenção local, no semanário A Voz da Póvoa; e em
Fevereiro de 2000, foi-lhe atribuído o 3º Prémio no Concurso Pequenas
Estórias de Teatro, promovido pelo CITAC (Círculo de Iniciação Teatral
da Academia de Coimbra), com a peça A Carta, dedicada a Xanana Gusmão.
Fotografa desde 1992, ano em que começou a ilustrar os seus textos
jornalísticos e literários com as próprias fotografias.
Abandonou o jornalismo em Abril de 1999, para se dedicar inteiramente à
produção literária, em edições de autor (por opção); é Revisora de
Provas Tipográficas e traduz obras do Castelhano para o Português.
É Vice-Presidente da APOC (Associação Portuguesa de Cister).
***
Tem publicadas as seguintes obras:
Manual de Civilidade (2000) – Reflexão sobre a ética do comportamento.
A História Fantástica de Pepino (2000) – Conto para a infância baseado
na vida real de um menino de rua.
Era um vez... Um menino sem vez... (2001) – Conto para a infância
baseado numa imagem televisiva de um menino timorense, por ocasião dos
massacres de Setembro de 1999.
Entre Brumas e Penedios (2002) – Cântico ao mar em linguagem poética.
A Carta (2002) – Monólogo teatral dedicado a Xanana Gusmão (3º Prémio
CITAC/2000).
O Menino Guerreiro (2003) – Conto para a infância baseado na vida real
de um pequeno soldado da Serra Leoa. O último livro da trilogia dedicada
a infâncias perdidas.
Luísa Dacosta - «no sonho, a liberdade…» (2006) – sobre a vida, a obra e
o pensamento desta escritora.
Contestação – De como Portugal tem o dever de Defender a sua Honra e a
sua História (2009) – Uma contestação do livro «1808» do jornalista
brasileiro Laurentino Gomes.
ÉTICA,DIREITOS e VALORES HUMANOS
Quando me convidaram para fazer uma palestra sobre Ética, Direitos e Valores Humanos, numa Escola Secundária, não tive como não aceitar, uma vez que um dia ousei escrever um Manual de Civilidade,
onde abordei esses temas, se bem que sob um ponto de vista muito
pessoal, baseado mais na minha observação de comportamentos humanos ao
longo de muitos anos, do que propriamente no saber livresco.
Depois de
formulado o convite, pensei: como pude aceitar tal incumbência, eu que
não sou propriamente especialista nestes temas? Eu, que sou apenas uma
criatura que se interessa pelas coisas humanas? Porém, uma vez dada a
palavra, repensei: qual a melhor forma de abordar o tema da Ética, dos Direitos Humanos e dos Valores Humanos para uma plateia de professores e alunos que, com certeza, já leram nos livros tantas coisas sobre a matéria?
Pus-me então várias hipóteses.
Poderia
dissertar sobre a ética e os valores humanos ao longo dos tempos, que
obviamente não foram sempre os mesmos desde os primórdios das sociedades
organizadas, dependendo essa ética e esses valores, dos humores, mais
ou menos sensíveis, humanitários e compassivos, dos poderosos de cada
época, porque concordemos ou não concordemos, temos de admitir que a
vida do homem e do planeta sempre girou à volta das vontades, boas ou
más, daqueles que nos governam.
Ou
poderia fazer um discurso erudito tanto quanto pretensioso, e citar os
dizeres, os saberes e os pareceres dos grandes filósofos, mestres e
pensadores, que estudaram em profundidade estas questões, correndo o
risco de dizer o que todos já disseram.
Ou
poderia ainda apresentar um historial desde os tempos do animal humano
das cavernas, cuja ética e valores seriam os da sobrevivência imediata, a
que vai da mão para a boca, numa tentativa de partilhar o mundo com os
animais não humanos, aproveitando, paralelamente, a generosidade da
Natureza, nessa altura ainda exuberante, límpida, despoluída e fértil em
todas as coisas, estendendo esse historial até à nossa era, à era das
armas biológicas, químicas e nucleares, onde a sobrevivência do planeta
está na ponta dos dedos de pouco mais de meia dúzia de poderosos, apesar
de loucos, cuja ética assenta mais no conceito do destruir do que no do
construir.
Poderia,
por outro lado, abordar a ética nos seus múltiplos aspectos, envolvendo
todos os actos humanos, quer a nível das profissões (todas as profissões
e cada uma em particular têm a sua própria ética, embora nos tempos que
correm essa ética tenha sido atirada ao caixote do lixo, e é o
que se vê – cada um por si e ninguém por todos), ou a nível de todas as
posturas do homem perante a vida e a sociedade, perante si e o outro,
nosso semelhante, e ainda o outro, o nosso dissemelhante mas companheiro
na aventura da existência (refiro-me às plantas e aos animais não
humanos – não gosto de me referir a estes como irracionais, porque entre os animais ditos humanos, conheço muitíssimos que são, esses sim, animais completamente irracionais, e não é da minha ética misturar os conceitos).
Coloquei
igualmente a hipótese de abordar os temas da actualidade que interferem
com a ética do mais precioso valor humano: a vida, analisando as
questões da manipulação genética das espécies animais e vegetais, da
clonagem, do aborto, da eutanásia, que dava muito pano para mangas, e
por muito que disséssemos e desdisséssemos, nunca chegaríamos a um
consenso, pois cada cabeça, sua sentença. Se bem que a minha atitude
perante todas as questões que impliquem a vida, a humana e a não humana,
é aceitar o que é natural e repudiar as manipulações, quaisquer que
sejam, porque mais tarde ou mais cedo, a própria Natureza encarrega-se
de colocar as coisas no exacto lugar ao qual sempre pertenceram. É ela
que tem a última palavra. Não o homem manipulador. Sobre isto, poderia
dar muitos exemplos, mas podemos ficar-nos pelo das vacas loucas e dos
animais que são criados à base de hormonas, que os seres humanos
ingerem, transformando-se eles próprios em carne tão balofa como toda
essa criação.
Já
reflectiram por que é que uma criança, hoje, de onze/doze anos é quase
tão alta como os pais, quando não os ultrapassam? Por que crescem tão
aceleradamente ou ficam obesas? Há estudiosos que dizem ser por causa
das carnes injectadas de hormonas, e há crianças que só comem carne e
gorduras de animais e tudo o que faz mal, mas não é proibido vender: o
que faz crescer os animais faz crescer também os humanos, dizem os
entendidos. E assim, por este andar, qualquer dia, num futuro não muito
longínquo, teremos uma população gigante, mas muito, muito balofa, e
pouco, pouco saudável. Mas tal perspectiva não impede quem de direito de
proibir tais desmandos.
Poderia
também falar dos valores no mundo contemporâneo que se diz estarem em
crise. Mas os valores de todos os mundos antes do nosso, sempre
estiveram em crise. Enquanto existirem homens, os valores humanos sempre
estarão em crise. Jamais nenhuma geração esteve satisfeita com o seu
procedimento ou com os seus valores. Sempre houve alguma coisa que se
deixou por fazer. Muitas lutas que se deixaram a meio, e que as gerações
seguintes retomaram, e que também não completaram. E assim,
sucessivamente.
O que
ontem foi, hoje já não é, mas amanhã poderá ser novamente, para tornar a
não ser no dia seguinte. É que o mundo parece avançar, mas por cada
três passos que o homem dá para a frente, recua cinco passos, e o que
pensamos ser progresso, na realidade, é retrocesso. Nunca como hoje, a
vida no planeta esteve tão ameaçada, apesar de toda a tecnologia de
ponta que o homem se gaba de ter inventado; mas é precisamente devido a
essa tecnologia que o mundo está à beira de um imenso abismo, e, dizem
os cientistas, mais do que aquilo que possamos imaginar.
Porém, em
vez de prevalecer o bom senso e procedimentos racionais e inteligentes,
temos os valores económicos a falar mais alto, em quase todos os
campos. Nenhum país altamente industrializado está preocupado com o
planeta, e muito menos interessado em salvá-lo. Primeiro estão os bolsos
dos que comandam as economias mundiais. E depois, lá muito depois, é
que talvez possa ter-se em conta o buraco de ozono, a poluição, as
éticas e os valores humanos e outras coisas que tais. Só que quem assim
pensa, não é suficientemente inteligente para considerar que ser rico
não serve para nada, a sete palmos debaixo de uma terra seca e
destruída.
Poderia
ainda falar dos Direitos do Homem, tão profanados nos países governados
por ditadores, mas também nas democracias, apesar de se dizerem
Democracias e Estados de Direito. Contudo, falar dos Direitos do Homem é
falar de um assunto já muito gasto, tão gasto que quase já não faz
sentido. Talvez seja chegado o momento de inverter os discursos e falar
nos tão esquecidos deveres e obrigações dos cidadãos. É que ao que
vemos, parece que toda a gente tem todos os direitos do mundo, mas
nenhuns deveres. Nenhumas obrigações.
Depois de
ter considerado todas estas hipóteses, concluí: tudo isto, todos já
sabem, já leram, já ouviram, já viram. O que me resta então dizer, para
acrescentar algo de novo a um tema velho? Não encontrei nada de
especial. Já tudo foi dito; já tudo foi estudado; já tudo foi repetido,
vezes sem conta. Mas então o que dizer? Lembrei-me: e se aproveitasse
alguns rasgos da minha experiência pessoal? Aqueles que vivi ao longo de
vinte anos de prática de jornalismo de intervenção e de investigação,
que me pôs diante dos homens, na sua mais profunda nudez de alma, e onde
lidei com valores e desvalores, com direitos e violações de direitos,
com abusos de poder, corrupção e corruptos, com a falta de ética, no seu
mais alto grau, mas também com a enorme capacidade do ser humano de
ultrapassar as impossibilidades, as improbabilidades, as dificuldades e
recriar-se, sobrevivendo num mundo feito à medida da demência dos
poderosos, sustentada pela insanidade dos povos que mantém esses
poderosos no poder: por vontade? por medo? por ignorância? Um pouco por
tudo isto e por algo mais. Veja-se o caso de Adolf Hitler no passado, e
de Saddam Hussein, até há bem pouco tempo. Castradores dos valores e
direitos humanos idolatrados por multidões. Não se culpe apenas os maus, porque maus são também aqueles que seguem esses maus, e os aplaudem.
Não se
consegue esgotar nenhum assunto, e eu não tenho a pretensão de esgotar o
tema que me propuseram. Tenho por hábito abordar as matérias pela rama,
deixando espaço para a reflexão de quem me ouve ou de quem me lê. Do
género: o que é que ela quis dizer com isto? Se forem como eu, têm
pretexto para ficarem um dia inteiro a pensar, a investigar, a ler e a
chegar a conclusões próprias.
Ora é esta a proposta que vos deixo.
Até aqui,
aludindo àquilo que poderia ter dito e não disse, mas ficou nas
entrelinhas, penso que já deixei alguns pontos para reflexão: que mundo,
este o nosso? Que valores estes, os nossos? O que queremos fazer de
nós? Que mundo queremos deixar aos nossos filhos? Tudo isso está na
nossa capacidade, e quando digo nossa, digo na capacidade dos
educadores (pais, encarregados de educação ou professores) em ensinar
aos jovens a raciocinarem, mais do que a obrigá-los a empinar matérias. E
uma das muitas maneiras é começar por fazer-lhes uma pergunta simples,
do género: «Se desaprovas que cuspam no teu prato de sopa, deves
cuspir no prato de sopa de quem contigo come à mesma mesa ou na mesa ao
lado?»
Esta é uma sugestão que deixei no meu Manual de Civilidade, logo no primeiro capítulo intitulado: Primeira Noção: O Respeito, que vai desaguar no preceito: não faças aos outros o que não gostas que te façam a ti.
A esta noção voltarei um pouco lá mais adiante. É que ao colocar-se uma
questão destas a um jovem, ele obrigar-se-á a um certo raciocínio, e a
partir desse raciocínio poder-se-á fazer grandes voos no que respeita ao
respeito a ter pelos outros seres, humanos e não humanos, pelos seus
direitos, humanos e não humanos, e pelos valores intrínsecos ao homem.
A propósito, gostaria de rapidamente contar uma pequena curiosidade em relação ao Manual de Civilidade, onde, obviamente, não esgoto o tema da civilidade,
ou do que eu penso ser civilidade, que implica uma ética do
comportamento, o respeito pelos valores humanos, o cumprimento dos
deveres e das obrigações de cada um, a exigência da observância dos
nossos direitos, e a consideração a ter por todos os seres, nossos
companheiros de existência no planeta.
Era uma tarde de domingo do mês de Fevereiro do ano 2000, e eu havia acabado de ler o livro Os Génios do Cristianismo – Histórias de profetas, de pecadores e de santos, do jornalista do Le Monde, Henri Tincq.
A história das religiões, de qualquer religião, e o estudo das
religiões comparadas foi sempre uma das minhas paixões, enquanto
estudante de História. E a leitura deste livro, e particularmente a
história dos nele denominados pecadores – os das guerras santas,
os das fogueiras da Inquisição, os Papas e as suas vinganças, os do
terror em nome de Deus (com paralelo hoje nos Bin Ladens que aterrorizam
o mundo também em nome de Deus) e talvez por me encontrar, nessa
altura, mais vulnerável às injustiças, porque havia sido vítima recente
da arbitrariedade dos poderosos, revoltou-me relembrar que há homens que
torturam homens em nome de valores que nada têm a ver com a nossa
humanidade, e esta foi a gota de água que me fez concretizar a ideia que
há muito vinha germinando dentro de mim: a de escrever um livro, onde
abordasse a minha reflexão sobre o fenómeno humano da civilidade ou da
falta dela, numa sociedade cada vez mais esvaziada de valores
humanizados.
E, nessa
mesma tarde, apontei num pedaço de papel os títulos daqueles que vieram a
fazer parte dos capítulos do livro. Porém, antes de o publicar, dei o
original a ler a um adolescente, tido como sobredotado. Ele aprovou o
livro, mas disse-me, assim tal e qual: «Um livro destes tem de incluir os temas do sexo, do progresso e da modernidade. Sem eles isto fica incompleto».
Meditei no que o jovem disse, e considerei. Na verdade o sexo tem a ver
com direitos, deveres e ética. O progresso tem a ver com direitos,
deveres e ética. A modernidade tem a ver com direitos, deveres e ética. O
jovem tinha razão. Acrescentei-lhe esses três tópicos, e o livro
continuou incompleto, mas não tão incompleto como anteriormente.
São
pormenores como este que fazem as grandes diferenças entre as
mentalidades. Penso que devemos ouvir as crianças e os adolescentes,
conversar com eles sobre estes e outros assuntos, porque neles a questão
da ética, dos direitos, dos deveres, das obrigações, dos valores,
encontram-se no seu estado mais puro, sem os vícios, nem as imperfeições
que os adultos, induzidos por um patético complexo de superioridade,
introduzem no seu modo de pensar preconceituoso.
Ainda
acerca do livro, tenho um outro rasgo de experiência, que penso ser
interessante referir. Um dia, a directora de uma escola do ensino básico
convidou-me para ir falar dos meus livros às crianças (eu na altura
tinha apenas o Manual de Civilidade e A História Fantástica de Pepino).
Mas antes, as professoras dessa escola adquiriram os livros para
poderem trabalhar com os alunos, para estes saberem o que me perguntar,
quando eu lá fosse falar com eles. Uma das professoras trabalhou então o
conteúdo do Manual de Civilidade com uma turma do quarto ano,
crianças dos seus 9/10 anos. Na altura da minha apresentação, estava
diante de cerca de 30 crianças a fazer-me as mais diversas perguntas,
sobejamente inteligentes, devo acrescentar. Uma delas marcou-me mais do
que as outras, porque achei interessantíssima e oportuna: era um menino e
perguntou-me: «Tu, que escreveste aquele livro, pões em prática tudo o que lá está escrito?»
Boa pergunta. E agora? O que responder?
Respondi-lhe
então, o que devia responder: eu não sou perfeita; não sou uma
super-mulher, mas claro que tento, na medida dos meus possíveis e da
minha noção de humanidade, praticar tudo aquilo que escrevi com
sentimento, de outro modo, não o escreveria, porque nunca poderia correr
o risco que correm os políticos, que nos piscam um olho, como que a
dizer: olha para o que eu digo, não olhes para o que eu faço. Não
poderia ter escrito tudo o que escrevi naquele livro, se não
acreditasse na minha filosofia e em mim própria. E este é o primeiro
passo para a prática de uma ética comportamental. Devo respeitar-me
primeiramente a mim, para ter condições de respeitar os outros.
Uma vez
que falei nos políticos, a propósito, foi precisamente um político que
me chamou a atenção para um pormenor comportamental que, à primeira
vista, escapa à nossa análise. Ao entrevistá-lo sobre o direito que as
populações têm de ver a sua cidade limpa de lixos, com contentores
lavados, as ruas limpas, sem excrementos de cães; sobre o direito que o
povo tem de ver realizadas as promessas que em tempo eleitoral são
juramentadas com uma veemência muito persuasiva, o presidente da Câmara
em questão disse-me: «Você vem aqui falar dos direitos do povo,
mas... e os deveres do povo? O povo não terá o dever de cumprir as
regras, as leis, as posturas camarárias? Há regras que devem ser
cumpridas, como não deitar o lixo para as ruas, a qualquer hora do dia e
fora dos contentores, limpar os excrementos dos seus animais, usando
para tal os saquinhos espalhados pela cidade... etc., etc., etc. ...»
Na
verdade o povo também tem deveres. E na maioria das vezes não os cumpre.
Quando trata a direitos, aqui-del-rei que os têm todos e exigem-nos em
grandes manifestações. Quando trata a deveres... o assunto muda de
figura. Olha-se para o ar, como quem diz: «Isto não deve ser comigo…»
E daquela vez, talvez pela primeira vez, tive de dar razão àquele presidente da Câmara. Na verdade, nem sempre o que parece é.
Quando a
Declaração Universal dos Direitos Humanos foi proclamada, ninguém se
lembrou de chamar a atenção para a questão dos deveres. Tal documento
deveria chamar-se Declaração Universal dos Direitos e dos Deveres
Humanos, porque para cada direito, há um dever correspondente, do qual o
homem se esquece frequentemente, porque não é explicitamente citado. E o
que está oculto, não é lembrado.
Tomemos por exemplo o artigo 9.º, que diz: «Ninguém pode ser arbitrariamente preso, detido ou exilado». Ora a este direito corresponde o dever de: «Ninguém pode arbitrariamente prender, deter ou exilar alguém».
Chegada
aqui, gostaria de contar um episódio dos mais interessantes que já vivi,
nos meus anos de Jornalismo, e que tem a ver com o que acabo de dizer.
Um dia estive detida arbitrariamente por breves 15 minutos, numa
esquadra da polícia. Eu sabia que tinha o direito de não ser detida
arbitrariamente, mas também sabia que o agente policial tinha o dever de
não me deter arbitrariamente, por isso, solicitei-lhe que me facultasse
uma determinada lei, que eu também tinha o direito de ver e ele tinha o
dever de facultar. E isto tudo porque saí à rua em defesa de um
trovador, que cantava às cinco horas da tarde, numa artéria comercial da
cidade, de grande movimento.
Um policial que por ali passava, entendeu que ele estava a fazer barulho
e a incomodar os comerciantes e os transeuntes. Ora o trovador era o
francês, Jack Deska, que cantava, belíssimamente, Joe Dassin e Jacques
Brell. Assobiava divinamente, e as pessoas rodeavam-no absolutamente
rendidas à sua arte. Tal como eu. Mas o polícia entendeu que ele estava a
fazer barulho na rua e a incomodar, e a lei diz que não se pode
fazer barulho na rua, nem incomodar (mas, nessa altura, só a partir da
meia-noite). Meti-me na história, porque a considerei absurda, e disse
ao polícia que os músicos de rua existem em todas as cidades civilizadas
da Europa, e aquele estava a enfeitar a tarde, naquela artéria. A minha
intervenção foi tida como arruaça na rua, e fomos os dois (eu e o
trovador) parar à esquadra, a pé, escoltados por dois agentes, porque
nos recusámos a entrar no carro da polícia, pois não nos considerámos
criminosos, para entrar num carro policial.
O povo
estava connosco, e seguiu-nos pelas ruas. Os agentes ouviram das boas.
Já na esquadra, depois de nos termos identificado, o chefe apresentou ao
cidadão francês um papel para este assinar. Eu fiz questão de o ler
alto, pois o músico percebia mal o português, e ele tinha o direito de
saber o que ia assinar. O que já deixou o polícia mal disposto. O que li
era um absurdo e aconselhei-o a não assinar aquele termo de culpa, pois
ele não tinha cometido nenhum crime público. O chefe da esquadra,
abusando do seu poder, deteve-me imediatamente, por incitamento a desobediência à autoridade, dentro de uma esquadra da polícia.
Eu conhecia a lei, e os meus direitos, e também os deveres do chefe da
polícia, e os meus deveres. Então solicitei que me mostrasse a lei do
ruído. E disse-lhe que quando saísse dali ia fazer queixa, aos seus
superiores, da sua arbitrariedade. Cantar na rua às cinco da tarde, não
fazia de ninguém um criminoso, por isso o cidadão francês, que não
conhecia as nossas leis, não devia assinar um termo de culpa naqueles
termos. Resumindo: o chefe da polícia bravateou, mas a história acabou
comigo e com o trovador, livres, fora da esquadra, quinze minutos mais
tarde, sem grandes consequências imediatas, porque a história continuou
mais tarde, e fez correr muita tinta. Mas naquele dia, foi o dever e a
obrigação do agente policial e o seu abuso de poder, em confronto com os
meus direitos e com os direitos do trovador, que estiveram em causa.
Por que
refiro este episódio? Porque penso ser fundamental que todos conheçamos
os nossos direitos e também deveres e obrigações, para podermos
enfrentar as arbitrariedades num caso como este, e saber fazer ver às
autoridades quais são os seus deveres, porque considero que a ignorância
é a maior inimiga do ser humano, conforme exponho, num capítulo do Manual de Civilidade, dedicado a este cancro social – a ignorância, por isso, entendo que se deve investir mundos e fundos no Ensino e na Educação dos jovens, pois já lá dizia Voltaire: «Quanto mais esclarecidos forem os homens, mais livres serão»,
só que, ao que constatamos, os nossos governantes não estão
interessados em que o povo seja esclarecido e livre, porquanto o
ignorante não é capaz de contestar as suas arbitrariedades. Eis porque
se investe tão pouco no ensino.
Dir-me-ão,
mas para cada direito está automaticamente implícito um dever, por
isso, não é preciso falar-se em deveres. Na Declaração Universal dos
Direitos Humanos, apenas no artigo 29.º se diz: «O indivíduo tem deveres para com a comunidade».
E só. Mas que deveres? O dever de punir arbitrariamente? O dever de
culpar? O dever de matar? O dever de aterrorizar? O dever de prender? O
dever de guerrear? Que deveres? Este laconismo não serve os interesses
dos cidadãos menos esclarecidos, e como ninguém nasce ensinado, é da
Ética ensinar os que não sabem.
Penso que
se falássemos mais nos deveres humanos do que nos direitos, o mundo
seria um pouco mais equilibrado. E dentro desses deveres há um simples
dito que poderia substituí-los e substituir todas as leis, todas as
regras, todos os códigos, todos os castigos: e que é o preceito máximo
utilizado desde a antiguidade por um ou outro líder religioso antes de
Cristo e depois adoptado pelo próprio Cristo, que é: «Não faças ao outros o que não gostas que te façam a ti».
Esta frase encerra e resume toda a ética, todas as regras, todos os
direitos, todos os deveres, todos os valores humanos e também não
humanos, e não seriam precisos nem polícias, nem leis, nem juízes, nem
advogados, nem tribunais, porque cada um encarregar-se-ia de não
maltratar o outro, simplesmente porque não gostaria de ser maltratado.
É esta regra que, como ser humano, tento seguir, e as leis dos homens não me dizem absolutamente nada. No Manual de Civilidade tenho um capítulo intitulado Ideias, Ideais e Ideologias, onde refiro que a minha lei, é a Lei Natural, porque é natural, que eu, como ser humano, me comporte de uma determinada maneira, de outro modo não poderei considerar-me um ser humano. Não sou daquelas que concordam com o ditame: errar é humano.
Isso é um expediente para desculpar os erros do homem. Se errar é
humano, então erremos, e estamos automaticamente desculpados. Mas será
que errar é humano? Ponhamos a questão de outra maneira: será que é
humano errar? Quando errar significa cometer um desacerto que prejudica
terceiros, quartos e quintos? Não é, com certeza. Errar é desumano,
quando quem erra insiste no erro. Quando muito, enganarmo-nos é humano.
Ter um lapso é humano. Mas errar não pode ser humano.
Poderia
estar indefinidamente a falar sobre tudo isto, mas como o meu objectivo é
não esgotar o tema que me foi proposto, nem poderia, finalizarei com a
leitura da primeira frase do epílogo do meu Manual de Civilidade: «Não me basta dizer sou um ser humano, preciso mostrar que o sou.
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