POR EBERTH VÊNCIO
Múcio
é um homem velho, vivido, vívido e voraz quando o assunto é Deus. Ateu
pacífico, destemido, provocador gentil, ele tem certeza absoluta: “acabe
com o dinheiro e você assistirá ao fim de todas as religiões”. Como
assim, Múcio?!
A conversa começou com José Saramago,
escritor português recentemente ceifado da superfície do planeta,
igualmente ateu e cheio de impaciência com a parcela crente da
humanidade (e que deve corresponder à maioria). Polêmico, Saramago
tornou-se uma criatura deveras distante da unanimidade entre leitores e
críticos literários. Certamente, teve a sua literatura afetada (ou
mesmo, superestimada) por causa das suas convicções políticas. Política e
literatura: taí uma farofa indigesta.
Apesar da idade avançada e do câncer de
próstata recentemente descoberto, Múcio não sucumbe à tentação da crença
inabalável a um ser divino, no “apagar da luzes”, como ele mesmo gosta
de dizer. Embora o médico tenha afirmado que ele morrerá de outra doença
que não o câncer — pois se trata de um tumor minúsculo diagnosticado em
fase muito precoce —, Múcio anda entregue às reflexões
existencialistas. “Meus amigos e ex-colegas de trabalho já morreram, ou
estão inválidos em suas cadeiras de roda sendo cuidados por terceiros.
Eu continuo na ativa. Sendo assim, de hoje em diante, só vou fazer
aquilo que tiver vontade. Por exemplo, enquanto houver juízo, não paro
de trabalhar”, ele comenta.
Na semana passada, Múcio reviu o Agenor,
um amigo de infância também sorteado com a mesma doença. O ambiente na
sala de espera da clínica de radioterapia ficou deveras agitado, porque
ambos não continham a animação do encontro, recordando episódios da
juventude, listando os que já se escafederam ou se entrevaram,
debulhando uma piada atrás da outra. Os demais pacientes assistiam à
cena sem entender o por quê de tamanha animação.
Não custou muito, apareceu uma
enfermeira — tão bonita quanto aquela do clássico cartaz — que colocou o
dedo indicador em riste na frente do rosto pedindo silêncio, por favor,
meus senhores. Os dois sorriram abafados até os olhos vazarem de tanta
lágrima e a vermelhidão tomar conta das suas cabeças há muito
desprovidas de cabelo.
Ao mesmo tempo em que ouço as anedotas
que o Múcio conta, penso o que seria do mundo se não houvesse as
religiões. Seria melhor ou pior do que vemos hoje? Seria mais pacífico?
Haveria menos fome e injustiça social? Faço do meu octogenário amigo um
guru, e ele não titubeia, garante: “seria bem melhor, pode ter certeza”.
A conversa com o velho Múcio conduz-me a
um pingue-pongue mental não verbalizado, marcado pelo antagonismo.
Penso naqueles que possuem uma fé irremovível, comovente, incondicional,
criaturas devotas absolutamente comprometidas com as ações
desenvolvidas pelas suas respectivas igrejas.
Penso nas campanhas solidárias, na
arrecadação de alimentos, agasalhos, remédios e outros mantimentos.
Penso na sopa comunitária que os voluntários da igreja do meu bairro
servem aos moradores de rua da cidade (uma vergonha, um dos maiores
descalabros sociais que se tem notícia, e que ninguém resolve).
Penso nos crentes fervorosos que
percorrem os hospitais a fim de levarem algum lenitivo aos doentes
graves, terminais, e aos seus parentes com a fé já miudinha, judiada,
duvidosa. Penso também nas mulheres carpideiras que percorrem funerais
de gente conhecida ou desconhecida, cantando hinos, encomendando almas,
consolando os sobreviventes, garantindo que há sim um local bem melhor
do que este aqui, a ser desfrutado na companhia do Pai, do Filho, e do
Espírito Santo (o que afinal significa esta trinca?!), dos anjos, dos
santos, e de todas as pessoas que a gente amava e que já desencarnaram.
Ora, perante tamanha iniquidade no planeta, uma vala profunda, per si,
já seria uma redoma pra lá de tranquila.
Penso nos auditórios, templos, galpões
lotados com o povão, nos cultos, nas cerimônias das mais variadas
agremiações religiosas, e de como um inestimável contingente de pessoas
busca nestes lugares refúgio, combustível pra tocar a vida. Rezam alto,
cantam, buscam convencer-se mutuamente que a fé vale a pena, e que é
fundamental continuar acreditando.
Por outro lado, alicerçado na História
da Humanidade, penso nas incontáveis vertentes religiosas, na
intolerância mútua, nas barbaridades cometidas pelos homens em nome da
divindade, desde as sociedades mais antigas, as tribos primitivas, até a
atualidade, em que homens-bombas continuam explodindo qualquer
tentativa de se compreender como seria este ser divino que referenda a
morte de outrem. Matar é preciso, com toda a fé, em nome de Deus, amém.
Penso na Inquisição, no desserviço à
ciência e ao intelecto humano, nas perseguições covardes, na manipulação
da fé alheia, no massacre da liberdade de pensamento, nas fogueiras que
queimaram bruxas, hereges, doentes mentais, homossexuais, gênios da
ciência e demais seres ameaçadores, adversários da igreja.
Penso nos crápulas travestidos como
líderes religiosos enveredados na pedofilia, uma das modalidades mais
abomináveis de violência contra o ser humano.
Fantasio um mundo sem religiões,
conforme propõem Múcio, Saramago, e John Lennon, na canção Imagine:
“...imagine que não existam países, nada pelo que matar ou morrer, e nem
religiões também...”. Religião é ferramenta de dominação ou controle? O
mundo subsistiria, organizadamente, sem o pecado, o castigo, o medo, o
inferno, e a certeza da vida eterna após um último suspiro?
Enquanto ouço meu adorável e senil amigo
teorizar a respeito da vida e da morte, da crença e da descrença, da
alma e da falta dela, viajo em meus pensamentos, traço paralelos, mas
não chego a qualquer resposta, senão que já é tarde da noite e o meu
corpo tem fome de pão. Se é assim com o corpo, imaginem só com o
pensamento, ao que alguns preferem chamar alma, espírito, sopro,
energia, cataplasma, fantasma, luz, etc...
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