segunda-feira, 26 de março de 2012

A FALSA INERRÂNCIA CIENTÍFICA BÍBLICA Parte II


Em meu texto anterior BÍBLIA X CIÊNCIA, limitei-me a analisar basicamente 3 alegações da "sapiência científica", ainda que expressa em termos simbólicos, que apologetas bíblicos alegam existir em seu livro sagrado. Neste texto, pretendo abordar outras alegações.
Para tal, vale reproduzir um trecho de um texto apologético bíblico disponível na Internet.


Acurácia científica
Uma outra espantosa evidência da inspiração divina da Bíblia é o fato de que muitos princípios da ciência moderna foram registrados como fatos da natureza na Bíblia muito antes que qualquer cientista os confirmasse experimentalmente. Uma amostra destes fatos inclui:
A redondeza da terra (Isaías 40:22)
A quase infinita extensão do universo (Isaías 55:9)
A lei da conservação de massa e energia (II Pedro 3:7)
O cíclo hidrológico (Eclesiastes 1:7)
O vasto número de estrelas (Jeremias 33:22)
A lei do aumento da entropia (Salmo 102:25-27)
A suma importância do sangue para a vida (Levítico 17:11)
A circulação atmosférica (Eclesiastes 1:6)
A campo gravitacional (Jó 26:7)
e muitos outros
Estes fatos obviamente não são declarados no jargão da ciência moderna, mas em termos da experiência básica no homem no dia-a-dia. Ainda assim, eles estão completamente de acordo com o fatos modernos da ciência.
É significativo também que nenhum erro jamais foi demonstrado na Bíblia, seja em ciência, história ou qualquer outro assunto. Muitos erros foram de fato declarados, mas eruditos bíblicos conservadores sempre foram capazes de encontrar soluções para esses problemas.


Talvez seja revelador o fato invariável de que não só neste caso, mas em todos os textos semelhantes que conheço, o apologeta nunca citar diretamente o versículo, pois apenas isso já parece comprometer as afirmações. Portanto, vamos reproduzi-los devidamente citados na Bíblia João Ferreira de Almeida, que é a principal Bíblia de uso da maioria dos defensores da Inerrância Bíblica em língua portuguesa, e a melhor traduzida.
A redondeza da terra (Isaías 40:22)
"E ele o que está assentado sobre o círculo da terra, cujos moradores são para ele como gafanhotos; é ele o que estende os céus como cortina, e o desenrola como tenda para nela habitar." *1
A quase infinita extensão do universo (Isaías 55:9)
"Porque, assim como o céu é mais alto do que a terra, assim são os meus caminhos mais altos do que os vossos caminhos, e os meus pensamentos mais altos do que os vossos pensamentos."
A lei da conservação de massa e energia (II Pedro 3:7)
"mas os céus e a terra de agora, pela mesma palavra, têm sido guardados para o fogo, sendo reservados para o dia do juízo e da perdição dos homens ímpios."
O cíclo hidrológico (Eclesiastes 1:7)
"Todos os ribeiros vão para o mar, e contudo o mar não se enche; ao lugar para onde os rios correm, para ali continuar a correr."
O vasto número de estrelas (Jeremias 33:22)
"Assim como não se pode contar o exército dos céus, nem medir-se a areia do mar, assim multiplicarei a descendência de Davi, meu servo, e os levitas, que ministram diante de mim."
A lei do aumento da entropia (Salmo 102:25-27)
"Desde a antigüidade fundaste a terra; e os céus são obra das tuas mãos. Eles perecerão, mas tu permanecerás; todos eles, como um vestido, envelhecerão; como roupa os mudarás, e ficarão mudados. Mas tu és o mesmo, e os teus anos não acabarão."
A suma importância do sangue para a vida (Levítico 17:11)
"Porque a vida da carne está no sangue; pelo que vo-lo tenho dado sobre o altar, para fazer expiação pelas vossas almas; porquanto é o sangue que faz expiação, em virtude da vida."
A circulação atmosférica (Eclesiastes 1:6)
"O vento vai para o sul, e faz o seu giro vai para o norte; volve-se e revolve-se na sua carreira, e retoma os seus circuitos."
A campo gravitacional (Jó 26:7)
"Ele estende o norte sobre o vazio; suspende a terra sobre o nada."
*1
Convido o leitor a ler não só cada versículo citado, mas também o contexto onde estes ocorrem, onde além de ficar mais evidente a intenção e natureza do texto, em geral poético, ocorrem também várias outras frases que se interpretadas de modo a se relacionarem com conhecimentos científicos resultam em tremendos disparates.
Querer extrair destas passagens um teor que tenha algo a ver com nossos modernos conhecimentos físicos é prejudicial ao próprio teor da obra, que jamais teve essa intenção.
A primeira e a última afirmações, já estão suficientemente analisadas em meu texto anterior BÍBLIA X CIÊNCIA, portanto, passemos agora a analisar uma por uma as demais.

A "QUASE" INFINITA EXTENSÃO DO UNIVERSO
A afirmação já possui uma construção bizarra ao afirmar "quase infinita"! Isso não faz sentido. É como dizer que alguma coisa é quase eterna. Entre uma quantidade Finita e uma Infinita existe uma distância INFINITA! Nada pode ser "Quase Infinito"!
Mas indo ao que interessa, vejamos novamente o versículo:
"Porque, assim como o céu é mais alto do que a terra, assim são os meus caminhos mais altos do que os vossos caminhos, e os meus pensamentos mais altos do que os vossos pensamentos." [Isaías 55:9]
Tenho a impressão que a pessoa que usa esse argumento está contando com o fato de que seu ouvinte não se dará ao trabalho de examinar o versículo, pois ao fazê-lo, notamos uma distância "quase infinita" entre o que pode ser extraído do versículo, e a idéia de Infinitude ou mesmo Imensidão do Universo. Que relação pode haver entre eles?
O versículo apenas diz que os desígnios divinos são muito mais amplos que os humanos, que a natureza divina é maior que a humana. Apenas isso. Pode-se até argumentar que sendo a Natureza divina infinitamente maior que a Humana, poderíamos correlacionar isso com o fato de Céu ser infinitamente maior que Terra, entendendo-se céu como Espaço Sideral.
Mas isso implica em atribuir arbitrariamente esses significados, uma vez que muitas vezes "Céu" é usado para figurar um domínio celestial místico, ou já o teríamos descoberto com nossos aviões e satélites, e por vezes é igualado ao termo "Firmamento" [Gênesis 1:8], que é mais comum para se referir ao "local" onde existem as estrelas, que é o que estaria muito mais próximo de nossa idéia de Espaço.
Não obstante, a Bíblia declara:
"Acaso podes, como Ele, estender o firmamento, que é sólido como um espelho fundido?" JÓ [37:18]
Nem creio que haja muito a acrescentar nesse ponto, o versículo é tão desvinculado de qualquer idéia de Vastidão Espacial que só mesmo omitindo a citação para que tal argumento não seja de imediato esvaziado. Na verdade, para a Bíblia, o espaço seria uma espécie de "Universo Aquático".

Como esses dois tópicos estão relacionados, sendo relativos à TERMODINÂMICA decidi tratá-los juntos. Para o primeiro conceito usou-se o versículo:
"mas os céus e a terra de agora, pela mesma palavra, têm sido guardados para o fogo, sendo reservados para o dia do juízo e da perdição dos homens ímpios." [II Pedro 3:7]
Onde sinceramente não consigo ver qualquer relação com o Primeiro Princípio da Termodinâmica, que diz basicamente que a Energia e a Matéria não podem ser criadas ou destruídas, mas apenas convertidas de uma forma à outra, ou seja, declara explicitamente que NÃO EXISTE CRIAÇÃO NEM DESTRUIÇÃO, SOMENTE TRANSFORMAÇÃO.
Mas o apóstolo Pedro neste capítulo está falando sobre o dia do Juízo Final, para ouvintes que, já há quase 2000 anos atrás, estavam impacientes com a demora do cumprimento das profecias. Curiosamente no mesmo contexto há margem para uma idéia que exatamente violaria a Lei de Conservação de Massa e Energia, que seria a Destruição do Mundo atual para o surgimento de uma nova Terra, como dizem os seguintes versículos:
"Ora, uma vez que todas estas coisas hão de ser assim dissolvidas, que pessoas não deveis ser em santidade e piedade, aguardando, e desejando ardentemente a vinda do dia de Deus, em que os céus, em fogo se dissolverão, e os elementos, ardendo, se fundirão? Nós, porém, segundo a sua promessa, aguardamos novos céus e uma nova terra, nos quais habita a justiça." [II Pedro 3:11-13]
É interessante notar como o apologeta seleciona o versículo que lhe interessa, e despreza o contexto! Essa "Nova Terra e esse Novo Céu" muito provavelmente seriam Criados por Deus assim como o foram na Gênese, conceitos que violam diretamente o Primeiro Princípio da Termodinâmica.
Mais interessante ainda notar que segundo essa mesma interpretação apologética, haveria então um conflito com o seguinte versículo:
"Desde a antigüidade fundaste a terra; e os céus são obra das tuas mãos. Eles perecerão, mas tu permanecerás; todos eles, como um vestido, envelhecerão; como roupa os mudarás, e ficarão mudados. Mas tu és o mesmo, e os teus anos não acabarão." [Salmo 102:25-27]
Que interpretada como sendo o Segundo Princípio da Termodinâmica, vulgo Lei de Entropia, termina por afirmar que o mundo, e consequentemente sua Massa e Energia, não será conservado!
Curiosamente este último também se chocaria com outra passagem bíblica, que diz:
"Uma geração vai-se, e outra geração vem, mas a terra permanece para sempre." [Eclesiastes 1:4]
Que é no mínimo estranho, visto que contraria a própria Criação e o Apocalipse.
No mesmo livro temos:
"O que tem sido, isso é o que há de ser; e o que se tem feito, isso se tornará a fazer; nada há que seja novo debaixo do sol. Há alguma coisa de que se possa dizer: Voê, isto é novo? ela já existiu nos séculos que foram antes de nós. Já não há lembrança das gerações passadas; nem das gerações futuras haverá lembrança entre os que virão depois delas." [Eclesiastes:9-11]
O que só poderia ser explicado mediante o mito do Universo cíclico, Eterno Retorno, caso contrário como poderíamos dizer que uma inovação tecnológica não seria nova sobre a Terra?
Isso seria até compreensível no contexto da época, uma vez que ao menos em termos de inovações tecnológicas, o mundo deveria parecer sempre igual para a maioria das pessoas. Mesmo assim é estranha tal afirmação num livro que entre outras coisas conta a história de um dilúvio global que não mais se repetirá.
Um outro versículo que costuma ser citado pelos apologetas como Primeiro Princípio da Termodinâmica está no livro de Hebreus:
"Porque nós, os que temos crido, é que entramos no descanso, tal como disse: Assim jurei na minha ira: Não entrarão no meu descanso; embora as suas obras estivessem acabadas desde a fundação do mundo; pois em certo lugar disse ele assim do sétimo dia: E descansou Deus, no sétimo dia, de todas as suas obras;" [Hebreus 4:3-4]
Alegando-se que ao terminar Deus de construir o mundo, este permanece conservado. Desse modo teríamos que admitir que o Princípio de Conservação de Massa e Energia foi violado no ato da criação, ou foi criado após o ato da criação, e desde então se estabeleceu.
Além da abusiva interpretação, esse idéia também esbarra no fato de que a Terra não é um planeta "pronto". Ela não está realmente terminada. A Terra está em constante processo de formação, até hoje temos movimentos de placas, surgimento de ilhas e demais fenômenos geológicos e puramente naturais que vão transformando o ambiente. Serão necessários ainda bilhões de anos para que o planeta para de sofrer transformações significativas e de fato se acomode em termos de estrutura geológica. Nesse sentido, o mundo não é uma obra acabada.
Como podemos ver, mais uma vez, a afirmação de que quaisquer conceitos termodinâmicos possam ser retirados destes versículos se baseia numa tremenda forçação de interpretação, que se usada em outras passagens, poderia resultar num afirmação oposta.
Os responsáveis pelo texto sequer podem afirmar que não conheciam passagens que permitissem tal oposição, pois é do mesmíssimo livro do Eclesiastes que eles retiraram versículos para defender o próximo argumento.

CIRCULAÇÃO ATMOSFÉRICA E CICLO HIDROLÓGICO
Essas duas afirmações se baseiam em duas passagens que ocorrem juntas no livro ECLESIASTES, da seguinte forma:
"O vento vai para o sul, e faz o seu giro vai para o norte; volve-se e revolve-se na sua carreira, e retoma os seus circuitos. Todos os ribeiros vão para o mar, e contudo o mar não se enche; ao lugar para onde os rios correm, para ali continuar a correr."
Diz claramente que o vento circula, o que qualquer pessoa atenta pode reparar no dia a dia, uma vez que o vento costuma na maioria dos lugares soprar de várias direções em ciclos regulares, mas isso pouco ou nada pode configurar em um afirmação de "Circulação Atmosférica", que vai muito além de uma simples e óbvia mudança de direção horizontal, mas envolve troca entre massas de ar também na vertical. O Vento é basicamente um fluxo de movimento de ar no sentido de uma área de Maior Pressão atmosférica para uma área de Menor Pressão. Como a atmosfera terrestre está em constante movimento dado a vários fatores que geram diferenças de temperatura e pressão, as correntes de ar são inevitáveis. O Eclesiastes porém, descreve apenas a percepção óbvia de um observador comum sem qualquer profundidade maior.
Já nem mesmo algo simples assim é dito a respeito de um Ciclo Hidrológico. Diz apenas que os rios sempre vão para o mar, mas este nunca se enche mais do que já está. Não há nada de ciclo da água aqui!
Ciclo da água seria dizer que os rios desembocam no mar, parte do mar se evapora, forma nuvens e cai como chuva, que penetra nos solos e desce aos lençois freáticos, de onde nascem os rios que voltam para o mar.
Mas não há nada disso no Eclesiastes! Apenas uma afirmação simples e poética submetida a um abusiva interpretação. Curioso é que uma interpretação muito menos forçada poderia tirar da Bíblia a afirmação exatamente contrária, baseada no versículo:
"Porque, assim como a chuva e a neve descem dos céus e para lá não tornam, mas regam a terra, e a fazem produzir e brotar, para que dê semente ao semeador, e pão ao que come," [Isaías 55:10]
Note que este versículo é retirado do mesmíssimo capítulo de onde o entusiasta da inerrância bíblica retirou a afirmação da "quase infinita extensão do universo", sendo imediatamente posterior. Será que o autor dessa apologética nunca viu esse versículo?
Se podemos forçar o Eclesiastes a uma afirmação sobre o ciclo hidrológico, porque não fazer o mesmo com o Isaías, que permite a interpretação clara de que a água que caí dos céus nunca mais retorna para ele?

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